São Paulo, terça-feira, 31 de julho de 2001

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"PROFESSORAS NA COZINHA"

Chauis conservam comunhão entre gerações

DA REDAÇÃO

Estou com o boneco do livro que deve pesar uns cinco quilos com suas 379 páginas, soltas ao vento, sem capa. Não se deveria fazer isto com os resenhadores, não há nada mais interessante que o livro como objeto. E, como coisa bonita, acho eu, ele influencia o conteúdo.
E tenho que confessar que impliquei solenemente com as primeiras ilustrações do livro. Quase me fizeram fechá-lo para sempre. Justamente as duas ilustrações iniciais, que dão o tom, valham-me os santos! Feiticeiras risonhas à Walt Disney, chapéu de bico, sapatos altos de fivela, cabelos soltos, cozinham. Onde? Num caldeirão que solta fumaça, sobre lenha, e a feiticeira-fada tempera a comida com estrelinhas e prova sua deliciosa bruxaria com cílios semicerrados.
Infantilizaram. Livro de cozinha tem muito disso, desde o primeiro. Não querem só dar receitas de comida, querem mandar mensagens subliminares de feminilidade. Coisa de mulher, menina-moça romântica. A família exige o almoço e o jantar quentes, na hora certa, e os horários vão provar que a mulher-fadinha passou seu tempo na atividade apropriada às prendas caseiras.
Isso não tem nada a ver com o conteúdo, dirão. São só delicadas ilustrações. Mas impressiona, retruco eu, que professoras modernas e ocupadas, que essa fera inteligente que é nossa filósofa Marilena se faça representar por bruxinhas do lar, deliciosamente encantadas em cozinheiras.
Bem, em todo caso, eu compraria este livro. Eu vou comprar este livro, com fada e tudo. As instruções para a novata são o forte dele, e já há algum tempo precisávamos de um manual brasileiro, que entendesse e esclarecesse as necessidades da iniciante, da noiva, da empregada, da atarefada.
Sempre é hora de consultar o que é assar, cozinhar, sauter ("sotê"), com a pronúncia ao lado, como nos livros de filosofia de Marilena, nos quais temos a etimologia da palavra. Equivalências e medidas, o uso das ervas, como comprar, guardar e conservar alimentos. O trivial, o cardápio, refeições bem balanceadas, as ocasiões especiais, comidas mais rápidas, molhos e depois as receitas.
Muita clareza e objetividade nas receitas e nas informações. Fiz minha lição de casa muito bem para entrevistar as Chauis e achei muita graça em comparar as linguagens de "A Nervura do Real", imanência e liberdade em Spinosa, de Marilena Chaui, e a linguagem das cozinheiras, a mesma Marilena e Laura, a mãe.
Prestem atenção. Trecho de "A Nervura do Real", de Marilena Chaui: "A causa de si e a causa eficiente imanente constitutivas da essência e a potência do absoluto desfazem o fundamento transcendente e nos fazem ver uma outra lógica de ação...". Hum, hum.
Agora vamos a um trecho de "Professoras na Cozinha", de Laura e Marilena Chaui: "Você já escutou sua mãe, sua tias ou suas avós conversando sobre cozinha? Não parece reunião de feiticeiras falando numa língua que só elas entendem? "Uma pitada de sal", diz uma (...). Este palavreado estranho tem razão de ser porque cozinhar é uma arte". "Este palavreado estranho!" Ora, vamos apostar qual o mais estranho, donas filósofas?
Voltando à resenha. Não se sabe se as Chauis estão na moda ou se foram abalroadas por ela que atualmente faz uma visita aos anos 60 e 70, antes da nouvelle cuisine. Onde mais encontraríamos inconfessáveis e deliciosas receitas de penne aos quatro queijos, talharim ao molho branco, camarões na moranga, salpicão de galinha, coquetel de camarão e pudim de leite condensado?
Sem falar das preciosas receitas étnicas, como o arroz bicherrie, coisas de família, com certeza. E, felizmente, não há as preocupações com comida light que assolam os livros de cozinha nem invenções forçadamente modernas forradas com coulis de gabiroba.
As Chauis e ajudantes, detentoras do saber culinário (e outros), fizeram um livro celebrando algo comum àqueles com mais de 30 anos, como o coq au vin (diga "coq ô van"), o estrogonofe, o savarin (diga "savarran"), a tarte tatin (diga "tatân"), coquilles saint-jacques (diga "coquíie sén jac"), e que conserva e assegura o sentimento de comunhão e unidade entre a velha e a nova geração. As receitas de Laura para Marilena e das duas para todas nós. Vivam os 50, os 60 e o 2001. (NINA HORTA)


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