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"PROFESSORAS NA COZINHA"
Chauis conservam comunhão entre gerações
DA REDAÇÃO
Estou com o boneco do livro
que deve pesar uns cinco quilos com suas 379 páginas, soltas
ao vento, sem capa. Não se deveria fazer isto com os resenhadores, não há nada mais interessante
que o livro como objeto. E, como
coisa bonita, acho eu, ele influencia o conteúdo.
E tenho que confessar que impliquei solenemente com as primeiras ilustrações do livro. Quase
me fizeram fechá-lo para sempre.
Justamente as duas ilustrações
iniciais, que dão o tom, valham-me os santos! Feiticeiras risonhas
à Walt Disney, chapéu de bico, sapatos altos de fivela, cabelos soltos, cozinham. Onde? Num caldeirão que solta fumaça, sobre lenha, e a feiticeira-fada tempera a
comida com estrelinhas e prova
sua deliciosa bruxaria com cílios
semicerrados.
Infantilizaram. Livro de cozinha
tem muito disso, desde o primeiro. Não querem só dar receitas de
comida, querem mandar mensagens subliminares de feminilidade. Coisa de mulher, menina-moça romântica. A família exige o almoço e o jantar quentes, na hora
certa, e os horários vão provar
que a mulher-fadinha passou seu
tempo na atividade apropriada às
prendas caseiras.
Isso não tem nada a ver com o
conteúdo, dirão. São só delicadas
ilustrações. Mas impressiona, retruco eu, que professoras modernas e ocupadas, que essa fera inteligente que é nossa filósofa Marilena se faça representar por bruxinhas do lar, deliciosamente encantadas em cozinheiras.
Bem, em todo caso, eu compraria este livro. Eu vou comprar este
livro, com fada e tudo. As instruções para a novata são o forte dele,
e já há algum tempo precisávamos de um manual brasileiro, que
entendesse e esclarecesse as necessidades da iniciante, da noiva,
da empregada, da atarefada.
Sempre é hora de consultar o
que é assar, cozinhar, sauter ("sotê"), com a pronúncia ao lado, como nos livros de filosofia de Marilena, nos quais temos a etimologia
da palavra. Equivalências e medidas, o uso das ervas, como comprar, guardar e conservar alimentos. O trivial, o cardápio, refeições
bem balanceadas, as ocasiões especiais, comidas mais rápidas,
molhos e depois as receitas.
Muita clareza e objetividade nas
receitas e nas informações. Fiz
minha lição de casa muito bem
para entrevistar as Chauis e achei
muita graça em comparar as linguagens de "A Nervura do Real",
imanência e liberdade em Spinosa, de Marilena Chaui, e a linguagem das cozinheiras, a mesma
Marilena e Laura, a mãe.
Prestem atenção. Trecho de "A
Nervura do Real", de Marilena
Chaui: "A causa de si e a causa eficiente imanente constitutivas da
essência e a potência do absoluto
desfazem o fundamento transcendente e nos fazem ver uma outra lógica de ação...". Hum, hum.
Agora vamos a um trecho de
"Professoras na Cozinha", de
Laura e Marilena Chaui: "Você já
escutou sua mãe, sua tias ou suas
avós conversando sobre cozinha?
Não parece reunião de feiticeiras
falando numa língua que só elas
entendem? "Uma pitada de sal",
diz uma (...). Este palavreado estranho tem razão de ser porque
cozinhar é uma arte". "Este palavreado estranho!" Ora, vamos
apostar qual o mais estranho, donas filósofas?
Voltando à resenha. Não se sabe
se as Chauis estão na moda ou se
foram abalroadas por ela que
atualmente faz uma visita aos
anos 60 e 70, antes da nouvelle
cuisine. Onde mais encontraríamos inconfessáveis e deliciosas
receitas de penne aos quatro queijos, talharim ao molho branco, camarões na moranga, salpicão de
galinha, coquetel de camarão e
pudim de leite condensado?
Sem falar das preciosas receitas
étnicas, como o arroz bicherrie,
coisas de família, com certeza. E,
felizmente, não há as preocupações com comida light que assolam os livros de cozinha nem invenções forçadamente modernas
forradas com coulis de gabiroba.
As Chauis e ajudantes, detentoras do saber culinário (e outros),
fizeram um livro celebrando algo
comum àqueles com mais de 30
anos, como o coq au vin (diga
"coq ô van"), o estrogonofe, o savarin (diga "savarran"), a tarte tatin (diga "tatân"), coquilles saint-jacques (diga "coquíie sén jac"), e
que conserva e assegura o sentimento de comunhão e unidade
entre a velha e a nova geração. As
receitas de Laura para Marilena e
das duas para todas nós. Vivam os
50, os 60 e o 2001.
(NINA HORTA)
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