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BERNARDO CARVALHO
A arte é o crime
Para Bresson, o real surge da representação assumida como tal e não do naturalismo
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"PICKPOCKET" (1959) , de Robert Bresson, é um filme
livremente inspirado em
"Crime e Castigo". No romance de
Dostoiévski, Raskólnikov invoca a
figura de Napoleão, o assassino de
milhares de pessoas absolvido pela
história, como exemplo para uma
teoria do homem extraordinário, capaz de criar a sua própria lei e arcar
com as responsabilidades dos seus
atos. Assim pretende justificar o assassinato de uma velha usurária, que
ele vai cometer com requintes de
violência. No filme de Bresson, agora lançado em DVD, um rapaz desempregado se torna batedor de carteiras, "uma aventura para a qual
não fora talhado", e se justifica com
uma teoria análoga à de Raskólnikov: o crime o destaca da massa e o
dignifica. Não se submeter à lei criada pelos outros é a afirmação do seu
gênio.
O batedor de carteiras entra em
ação pela primeira vez entre os espectadores das corridas de cavalos.
Bresson filma a cena da forma mais
antinaturalista -de resto, como todo o filme. Os atores-figurantes assistem à corrida de frente para a câmera. O batedor de carteiras está estrategicamente disposto atrás de
sua vítima, movido por um impulso
que, como já assinalaram outros críticos, tem muito de erótico. A cena
ilustra a teoria do personagem: todos estão distraídos, como se fossem
autômatos, suas expressões são banais à força de tanta semelhança, estão hipnotizados por um interesse
comum. Só ele, à beira de cometer
um crime, tem a atenção desviada.
Seu olhar é o único vivo e misterioso
na sua individualidade.
No final do filme, o protagonista
volta à cena do crime inicial, às corridas de cavalos, onde começou sua
carreira. Mas, desta vez, apesar de
toda a experiência acumulada, será
pego em flagrante. Quando a mulher
que ele ama o visita na prisão, o batedor de carteiras diz que foi preso
porque se distraiu. Para ele, é uma
idéia insuportável. Significa que já
não se distingue da massa distraída,
que foi vítima da distração, como todos os outros.
Bresson era um cineasta marcado
pela religião, pelas questões do pecado e da culpa. Adaptou dois outros
textos de Dostoiévski: "Uma Mulher
Dócil" (1969) e "Quatro Noites de
um Sonhador" (1972, baseado em
"Noites Brancas"). Na leitura idiossincrática que fazia da obra de Dostoiévski, Vladimir Nabokov não media as palavras quando era para pichar o compatriota. Em relação a
"Crime e Castigo", o que mais o
exasperava era a retórica sentimentalista levada ao cúmulo, segundo
ele, na cena redentora em que o assassino e a prostituta lêem o Novo
Testamento.
Em "Pickpocket" também há expiação da culpa e redenção pelo
amor. Mas nada pode ser taxado de
sentimentalista. Todo o cinema de
Bresson está fundado numa lição e
num paradoxo teatral: o falso, quando homogêneo, resulta verdadeiro.
Para que o real se manifeste na tela,
é preciso que nem a cena nem os
atores tentem disfarçar o que são.
Para Bresson, o real brota do artifício da representação assumido como tal e não das convenções do naturalismo. Por isso, preferia não trabalhar com atores, que são fingidores profissionais. Preferia a inexperiência dos iniciantes, os quais chamava de modelos.
O mundo em "Pickpocket" é representado como um cenário onde
os homens evoluem numa coreografia milimetricamente ensaiada, que
chega ao ápice quando, numa estação de trens, vários ladrões agem em
conjunto. Os gestos são rigorosamente estudados e encenados, à maneira da própria "arte" do batedor de
carteiras. Tudo é filmado em detalhe, em primeiro plano: mãos, carteiras, lapelas e bolsas, como numa
dança de objetos parciais e autônomos. Um mundo de movimentos
lentos e de figurantes vagando pelas
ruas, como zumbis (que, às vezes,
lembram os personagens dos quadros de Balthus) ao som amplificado
dos seus passos nas calçadas, como
se vivessem em estúdio.
Assim como Dostoiévski, Bresson
inaugura um mundo que não existia
antes dele. E esse mundo é tão mais
real por ser efeito de uma concepção
autoral inimitável e sem precedentes. Antes de começar propriamente
a ação do filme, o batedor de carteiras escreve em seu diário: "Sei que
de costume os que fizeram tais coisas se calam e os que as contam não
as cometeram. E, no entanto, eu as
cometi". É a deixa para o espectador
entender que nunca viu o que está
para ver. E que daí em diante tudo
dependerá desse paradoxo tão caro
a Bresson, segundo o qual a verdade
nasce da invenção. Num desdobramento e numa inversão muito peculiar da teoria de Raskólnikov, a própria arte rouba o lugar do crime.
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