São Paulo, Sábado, 31 de Julho de 1999
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O porta-voz da marginália


Garimpeiro, lanterninha e vendedor de perfumes em bordéis, Antônio Fraga, morto em 1993, convidou as bordas da sociedade para a literatura; a Relume Dumará publica esta semana seu "Desabrigo e Outros Trecos"


CASSIANO ELEK MACHADO
da Reportagem Local

Acompanhe a trajetória de Antônio Fraga. Ele vendeu siris na zona do Mangue, no Rio de Janeiro, foi mineiro em Minas Gerais, garimpeiro em Goiás, lanterninha de cinema, vendedor de perfume francês em bordéis e auxiliar de cozinha no hotel Glória, no Rio.
Gostar mesmo, ele gostava de escrever. Nos seus mais de 60 anos de biscates, ele guardava pelo menos duas horas de seus dias para preencher papéis que encontrava nos bares e nas ruas, seus principais habitats.
Fraga morreu em 1993, deixando apenas um livro publicado, em três pequenas e esparsas edições.
Esta semana, pela primeira vez, a biografia cheia de vírgulas do escritor carioca chega onde ele sempre quis que ela desaguasse: nas estantes de todo o país.
A editora Relume Dumará lança o volume "Desabrigo e Outros Trecos", que reúne a única obra já publicada de Fraga ("Desabrigo") e 14 escritos inéditos ("Outros Trecos").
No total, são apenas 118 páginas, mas basta olhar a dedicatória para entender quem é que está falando. "Para mim mesmo, com muita estima", escreve Fraga para si mesmo. Com as seis palavras, conciso como na maior parte de seus textos, ao mesmo tempo ele exercitava seu humor sinuoso e dizia algo verdadeiro.
Mesmo tendo convivido com uma fatia espessa da "intelligentsia" (aí incluídos desde escritores como Oswald de Andrade até pintores como José Pancetti), Fraga sempre esteve às margens da sociedade. E eram essas bordas sociais o assunto de sua escrita.
"A obra toda dele pode não falar de prostitutas, bandidos e biscateiros, mas Fraga sempre está mexendo com as coisas que incomodam", diz a organizadora de "Desabrigo e Outros Trecos", a professora Maria Célia Reis da Silva, provavelmente a única a poder falar a frase "obra toda".
Maria Célia mergulhou por acaso na literatura de Antônio Fraga. Seguindo os rastros da literatura de João Antônio (1937-1996), autor de "Malagueta, Perus e Bacanaço", ouviu um diz-que-diz sobre um tal Antônio Fraga. Muitos sebos depois, conseguiu um exemplar surrado de "Desabrigo". Não sabia, mas seus próximos 15 anos estariam reservados a Fraga. Seu mestrado, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi "A Voz do Marginal". "Antônio Fraga: Personagem de Si Mesmo" é o nome de sua tese de doutorado, na PUC-RJ.
A pesquisadora conta que conheceu Fraga pessoalmente em 1986. Ciceroneada pelo escritor, com seus invariáveis óculos escuros e paletó azul-marinho de segunda mão, ela foi apresentada ao que restava da zona do Mangue, antiga região boêmia do Rio.
É por lá que caminham cobrinha, desabrigo e miquimba (com minúscula), os três personagens centrais de "Desabrigo". Nessa narrativa, Fraga radicaliza várias características modernistas.
Sem pontos finais, quase sem vírgulas, o livro é forrado de gírias, num claro convite para que a voz coloquial urbana marginal rasgasse os limites da literatura. Por essas e outras características, notadamente um texto intrincado, mas com grande fluência, Fraga chegou a ser chamado com certa insistência de o "James Joyce do Mangue".
Mas com a mesma insistência foi esquecido nos cantos literários. Nos anos 60, exilado pelos outros, o escritor faz espécie de auto-exílio. Muda para um casebre em Queimados (Baixada Fluminense). Lá continuou tecendo mais de uma dúzia de livros, na mesma mesa em que almoçava. Em setembro, a Relume Dumará lança o inédito "Moinho E".
"Publicar as obras inéditas do Fraga é saldar uma dívida da cultura brasileira", disse o jornalista e escritor Zuenir Ventura, que entrevistou Fraga nos anos 80.


Livro: Desabrigo e Outros Trecos Autor: Antônio Fraga Lançamento: Relume Dumará Quanto: R$ 19 (118 págs.)

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