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CINEMA/ESTRÉIA
"AMNÉSIA"
Baseado em roteiro do irmão, Christopher Nolan conta a história de desmemoriado em busca de vingança
Diretor destrói premissa que sustenta longa
Divulgação
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O ator Guy Pearce, em cena do filme "Amnésia", baseado no conto "Memento Mori", de Jonathan Nolan (irmão do diretor) |
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Um homem perde a memória
recente depois que sua mulher é estuprada e morta.
Lembra-se de fatos passados
(até a morte da mulher) e com isso coloca-se numa curiosa posição: sente-se obrigado a vingar a
mulher, embora seu "handicap"
dificulte terrivelmente a tarefa a
que se propôs.
Não será indiscrição dizer que
este homem, Leonard, chega a
concretizar seu acerto de contas:
essa é a primeira cena de "Amnésia". No mais, o centro da empreitada do diretor-montador-roteirista Christopher Nolan consiste
justamente em narrar sua história
de trás para diante.
Cria-se um estranho efeito: como trava contato primeiro com o
desfecho da história e só depois
com sua circunstância, o espectador é convocado a partilhar da
aventura de Leonard, bem mais
do que a assisti-la. De certa forma,
estará dentro do esquecimento
que acomete o protagonista.
O procedimento transformou
"Amnésia" num xodó da crítica
norte-americana, embora, na verdade, exista registro anterior de
um filme dirigido pelo chileno
Raoul Ruiz em que a narrativa
também se dá de trás para frente.
Deixemos de lado a questão da
originalidade. Uma experiência
interessante é ler o conto "Memento Mori", de Jonathan Nolan
(irmão do diretor), em que o filme
é baseado. A partir dessa leitura, é
possível dizer que Christopher alterou não apenas a ordem narrativa como o sentido do conto de
Jonathan. Neste, estamos às voltas
com um homem cuja memória é
restrita aos últimos dez minutos
de vida. O que é alguém nessas
circunstâncias? -indaga o texto.
"Você não pode ter uma vida normal... Você é um homem morto...
Então a pergunta não é "ser ou não
ser", porque você não é."
Este homem viverá sempre o
mesmo momento, infinitas vezes.
O que nos coloca diante de uma
situação curiosa: o sentido é sempre ausente, não se mostra. Quando muito flutua, insinua-se para
depois desaparecer.
O filme de Christopher é o inverso. Ele se se fixa sobre um fato
(a necessidade de se vingar do homem que matou sua mulher) e
sobre as atitudes de Leonard para
suprir sua deficiência de memória
e chegar ao criminoso: 1) discernir, de maneira obsessiva, os fatos
das impressões (estas, enganosas
como a memória); 2) anotar escrupulosamente aquilo que julga
serem "fatos" em papéis, fotos e
mesmo em sua pele (onde tatua o
que, na trama, é mais essencial).
O filme de Nolan é como um desafio lógico, que recoloca a montagem no centro da narrativa. Seu
interesse consiste em saber aonde
se chegará a partir do procedimento narrativo proposto. Não
coloca em questão o sentido das
coisas, da vida, do tempo: o sentido está dado desde o início.
"Amnésia" dissolve as questões
do texto original (o que são o tempo, a memória, o instante, o destino, o devir, o homem?) e, em troca, oferece ao espectador a dissecação do tempo cinematográfico.
Esse tempo, diz Gilles Deleuze
(citando Bergson), é impessoal,
uniforme, abstrato, imperceptível. Christopher Nolan nos oferece, ao contrário, a imagem de um
tempo pessoal, multiforme, concreto e perceptível.
No entanto, e esse é o segredo,
não se trata de reconhecer no cinema uma ilusão ou o reproduzir
dessa ilusão. Trata-se, antes, de
construir uma outra ilusão, mais
sedutora, por meio da montagem.
Em termos clássicos, a montagem é o recurso pelo qual o cineasta disfarça a descontinuidade
das coisas, isto é, pelo qual torna
uniformes um tempo e um espaço que não o são. A tentativa de
"Amnésia" talvez seja a de remeter o espectador a essa integridade
do instante que o cinema clássico
de certa forma surrupia.
O resultado desmente essa hipótese. A angústia do instante está ligada a sua infinita divisibilidade, o que nos remete à impossibilidade do sentido. Como trabalha
com um sentido previamente dado (ao contrário do conto em que
se inspirou) e com um narrador
onisciente, toda a empreitada do
filme parece consistir na demolição sistemática da premissa que o
sustentaria. Resta a poeira que se
joga em nossos olhos.
Amnésia
Memento
Direção: Christopher Nolan
Produção: EUA, 2001
Com: Guy Pearce, Carrie-Anne Moss, Joe
Pantoliano
Quando: a partir de hoje nos cines
Center Iguatemi, Eldorado, Espaço
Unibanco, Jardim Sul e circuito
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