São Paulo, sexta-feira, 31 de agosto de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA/ESTRÉIA

"AMNÉSIA"

Baseado em roteiro do irmão, Christopher Nolan conta a história de desmemoriado em busca de vingança

Diretor destrói premissa que sustenta longa

Divulgação
O ator Guy Pearce, em cena do filme "Amnésia", baseado no conto "Memento Mori", de Jonathan Nolan (irmão do diretor)


INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Um homem perde a memória recente depois que sua mulher é estuprada e morta.
Lembra-se de fatos passados (até a morte da mulher) e com isso coloca-se numa curiosa posição: sente-se obrigado a vingar a mulher, embora seu "handicap" dificulte terrivelmente a tarefa a que se propôs.
Não será indiscrição dizer que este homem, Leonard, chega a concretizar seu acerto de contas: essa é a primeira cena de "Amnésia". No mais, o centro da empreitada do diretor-montador-roteirista Christopher Nolan consiste justamente em narrar sua história de trás para diante.
Cria-se um estranho efeito: como trava contato primeiro com o desfecho da história e só depois com sua circunstância, o espectador é convocado a partilhar da aventura de Leonard, bem mais do que a assisti-la. De certa forma, estará dentro do esquecimento que acomete o protagonista.
O procedimento transformou "Amnésia" num xodó da crítica norte-americana, embora, na verdade, exista registro anterior de um filme dirigido pelo chileno Raoul Ruiz em que a narrativa também se dá de trás para frente.
Deixemos de lado a questão da originalidade. Uma experiência interessante é ler o conto "Memento Mori", de Jonathan Nolan (irmão do diretor), em que o filme é baseado. A partir dessa leitura, é possível dizer que Christopher alterou não apenas a ordem narrativa como o sentido do conto de Jonathan. Neste, estamos às voltas com um homem cuja memória é restrita aos últimos dez minutos de vida. O que é alguém nessas circunstâncias? -indaga o texto. "Você não pode ter uma vida normal... Você é um homem morto... Então a pergunta não é "ser ou não ser", porque você não é."
Este homem viverá sempre o mesmo momento, infinitas vezes. O que nos coloca diante de uma situação curiosa: o sentido é sempre ausente, não se mostra. Quando muito flutua, insinua-se para depois desaparecer.
O filme de Christopher é o inverso. Ele se se fixa sobre um fato (a necessidade de se vingar do homem que matou sua mulher) e sobre as atitudes de Leonard para suprir sua deficiência de memória e chegar ao criminoso: 1) discernir, de maneira obsessiva, os fatos das impressões (estas, enganosas como a memória); 2) anotar escrupulosamente aquilo que julga serem "fatos" em papéis, fotos e mesmo em sua pele (onde tatua o que, na trama, é mais essencial).
O filme de Nolan é como um desafio lógico, que recoloca a montagem no centro da narrativa. Seu interesse consiste em saber aonde se chegará a partir do procedimento narrativo proposto. Não coloca em questão o sentido das coisas, da vida, do tempo: o sentido está dado desde o início.
"Amnésia" dissolve as questões do texto original (o que são o tempo, a memória, o instante, o destino, o devir, o homem?) e, em troca, oferece ao espectador a dissecação do tempo cinematográfico.
Esse tempo, diz Gilles Deleuze (citando Bergson), é impessoal, uniforme, abstrato, imperceptível. Christopher Nolan nos oferece, ao contrário, a imagem de um tempo pessoal, multiforme, concreto e perceptível.
No entanto, e esse é o segredo, não se trata de reconhecer no cinema uma ilusão ou o reproduzir dessa ilusão. Trata-se, antes, de construir uma outra ilusão, mais sedutora, por meio da montagem.
Em termos clássicos, a montagem é o recurso pelo qual o cineasta disfarça a descontinuidade das coisas, isto é, pelo qual torna uniformes um tempo e um espaço que não o são. A tentativa de "Amnésia" talvez seja a de remeter o espectador a essa integridade do instante que o cinema clássico de certa forma surrupia.
O resultado desmente essa hipótese. A angústia do instante está ligada a sua infinita divisibilidade, o que nos remete à impossibilidade do sentido. Como trabalha com um sentido previamente dado (ao contrário do conto em que se inspirou) e com um narrador onisciente, toda a empreitada do filme parece consistir na demolição sistemática da premissa que o sustentaria. Resta a poeira que se joga em nossos olhos.

Amnésia
Memento
  
Direção: Christopher Nolan
Produção: EUA, 2001
Com: Guy Pearce, Carrie-Anne Moss, Joe Pantoliano
Quando: a partir de hoje nos cines Center Iguatemi, Eldorado, Espaço Unibanco, Jardim Sul e circuito



Texto Anterior: "Crônica de uma certa Nova York": Stanley Tucci faz reconstituição sensível
Próximo Texto: Análise: Enigma fica escondido em emaranhado de variáveis
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.