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CARLOS HEITOR CONY
O primeiro romance-reportagem de nossa literatura
Em 1905, começou a aparecer
no "Correio da Manhã", do
Rio de Janeiro, uma série de reportagens romanceadas, bem ao
gosto da época, quase um folhetim e certamente um ancestral
das telenovelas de hoje. Até certo
ponto, nenhuma novidade. Tanto
na França como no Brasil, que lhe
copiava os modelos, as modas e,
em alguns casos, os vícios, o gênero era comum, servindo ao mesmo tempo para dar um algo mais
aos jornais e, eventualmente, um
livro a mais às livrarias.
"O Guarani", de José de Alencar, e as ""Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel
Antônio de Almeida, são dois
exemplos notáveis, uma vez que
fizeram sucesso nas edições efêmeras dos jornais e logo se constituíram em dois clássicos indiscutíveis de nossa literatura.
Naquele início de século 20, o
Rio vivia uma fase de agitação
urbanística. Tanto o governo federal como a prefeitura da então
capital da República promoviam
melhoramentos radicais na fisionomia do centro da cidade. O
morro do Castelo, local onde o
Rio fora fundado, passou a ser
considerado um obstáculo à sua
modernização. Com o apoio do
presidente Rodrigues Alves e a
obstinação do prefeito Paulo de
Frontin, o morro foi condenado a
desaparecer, criando uma esplanada que obviamente se chamou
do Castelo, dando à ponta do Calabouço o espaço físico para o aeroporto Santos Dumont, na época
o maior e mais utilizado do Brasil.
Um rapaz de 24 anos, mulato,
estudante intermitente da Politécnica, com tendências à literatura e ao alcoolismo, começou a
escrever um folhetim com um título bastante usual na época e no
meio: "D. Garça ou o que se Passou em Começos do Século 16 nos
Subterrâneos dos Padres da Companhia de Jesus, na Cidade de S.
Sebastian do Rio de Janeiro, a
Mui Heróica, por Ocasião da Primeira Invasão Francesa ao Mando de Duclerc".
Mais tarde, o folhetim seria conhecido como "O Subterrâneo do
Morro do Castelo", tal como está
sendo reeditado.
Era anônimo por vários motivos. Antes de mais nada, pelo tom
de reportagem e de folhetim ao
gosto do século 19, no gênero que
fizera a glória de Alexandre Dumas, que aproveitava referências
históricas como ponto de partida
para a ficção desvairada. O leitor
de Dumas, Michel Zévaco, Ponson du Terrail e Xavier de Montépin sabia que metade das histórias que lia tinha um fundo verdadeiro, um tênue embrião de
verdade. A outra metade não.
Era anônimo, também, porque
seu autor não chegava a ser um
profissional. Seria o que agora
chamamos de frila, ou free lancer,
categoria periférica às redações.
A importância de "O Subterrâneo do Morro do Castelo" cresceu
bem mais tarde, quando se identificou o seu autor: Lima Barreto,
o mesmo que aproveitaria os dias
que passara na redação do ""Correio da Manhã" para escrever um
dos nossos clássicos, "As Recordações de Isaías Caminha", retrato
insuperável das entranhas de um
jornal e da vida literária de uma
época.
O folhetim fez sucesso, pois esticou na ficção um acontecimento
que mexia física e espiritualmente com a cidade. No cenário real
da demolição de um morro histórico, corria a lenda de estranhos
subterrâneos abertos pelos jesuítas, que ali escondiam gigantescas imagens de ouro. Expulsos de
Portugal e de suas colônias pelo
marquês de Pombal, os jesuítas
não tiveram tempo de levar o tesouro, daí que o subterrâneo do
Castelo foi promovido a uma versão tropical da caverna de Ali Babá.
Lima Barreto limitou-se a escrever a reportagem nos padrões então usados e que vigoraram na
imprensa brasileira até a modernização dos textos, já nos anos 50,
quando foi abandonado o modelo francês e adotadas as regras do
jornalismo norte-americano.
Contudo o grande Lima Barreto já está presente: basta a cena
em que descreve a sessão mediúnica em que o espírito do marquês de Pombal se manifesta no
próprio prefeito Paulo de Frontin.
Ou seja, o famoso engenheiro seria uma reencarnação do reconstrutor de Lisboa às avessas: enquanto Pombal construía, Frontin botava abaixo. Nada mais Lima Barreto.
À margem da comprida reportagem cheia de macetes e alusões
pontuais, Lima entremeou uma
novela rocambolesca, também
com fundo histórico. É sabido que
Duclerc, que invadiu a cidade em
1710, foi assassinado na prisão,
mas por delito cometido na cama
de uma de suas amantes. Desse
embrião verdadeiro, Lima partiu
para uma complicada e deliciosa
aventura amorosa entre um ex-nobre que se tornara jesuíta e
uma dama que amava o invasor
francês.
Em sua notável biografia de Lima Barreto, que pode ser considerada definitiva, Francisco de Assis Barbosa diz que a novela é
apenas "um ensaio de vôo". Discordo do famoso biógrafo. Antes
desse folhetim, Lima já havia iniciado o esboço de ""Clara dos Anjos". E, logo após, os meses de experiência na redação do "Correio
da Manhã" deram-lhe cenário e
personagens para escrever "Isaías
Caminha".
"O Subterrâneo do Morro do
Castelo" ou "D. Garça..." estão
para a obra de Lima Barreto como "A Tragédia da Rua das Flores" está para "Os Maias". É mais
do que um anúncio. É o dedo que
revela o gigante.
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