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BERNARDO CARVALHO
O desejo de quem conta
A primeira vez que ouvi
falar de Zhang Yuan foi
num dos ensaios da coletânea
"Rites of Realism" ("Ritos de Realismo", Duke University Press,
2002), organizada pela brasileira
Ivone Margulies, professora de cinema do Hunter College, em Nova York. O texto, de autoria da
própria organizadora, tratava da
"reencenação" no cinema (indivíduos que, depois de passarem
por uma experiência marcante
na realidade, interpretam, como
atores, os seus próprios papéis numa reconstituição cinematográfica daquela mesma experiência).
O gênero, nem documentário
nem simplesmente ficção, transgride "as fronteiras entre ser e representar". "Close Up" (1990), de
Abbas Kiarostami, é um exemplo
extraordinário.
Há duas semanas, um filme de
Zhang Yuan foi exibido em São
Paulo, entre os títulos de uma pequena retrospectiva do cinema
chinês. Saí um pouco decepcionado. "O Outro Lado da Cidade
Proibida" (1996) aparentemente
não tem quase nada a ver com o
outro filme do cineasta produzido
no mesmo ano, "Filhos", sobre o
qual Margulies discorria no seu
ensaio.
Em "Filhos", uma família de
Pequim interpreta os dez dias que
precederam a decisão de internar
o pai alcoólatra numa clínica. A
proposta da "reencenação" partiu dos próprios intérpretes, vizinhos do cineasta. Cada um assumiu e reviveu diante das câmeras
o seu próprio papel na realidade.
O pai saiu da clínica para interpretar a si mesmo. A violência é
reproduzida, representada em todo o seu desespero melodramático. Os filhos também são viciados
e violentos. O privado se torna
público. A representação realista
ganha uma ambigüidade perversa e transgressora. O que à primeira vista pode parecer mero
psicodrama, sessão de cura e exibicionismo, termina por se revelar bem mais complexo, embaralhando as certezas entre o real e a
representação. O filme foi censurado na China, assim como "O
Outro Lado da Cidade Proibida".
Zhang Yuan talvez seja o mais
polêmico representante da chamada "sexta geração" do cinema
chinês. É um cineasta da transgressão. Acabei entendendo que
"O Outro Lado da Cidade Proibida", embora sendo pura ficção,
nem por isso é menos perverso.
Mesmo num filme que tem muito
de teatral, Zhang Yuan ainda
consegue expor a ambigüidade
da representação, faz a encenação de uma encenação.
Detido à noite, num parque onde se encontra com outros homens, um homossexual é levado a
uma delegacia e forçado a contar
a sua história a um policial. Ao
longo do interrogatório, de repente aflora a suspeita e a consciência difusa de que o que ele relata
pode ser ficção, uma artimanha
narrativa. O efeito é de certa forma análogo à ambigüidade instaurada pela "reencenação" em
"Filhos".
O relato é resultado do desejo de
quem fala e depende da sua capacidade de despertar em quem ouve o desejo de ouvir e acreditar.
Todo o interrogatório acaba se revelando uma forma de sedução
em que o homossexual, em princípio subjugado pelo policial, é no
fundo quem tem as rédeas na
mão. Ele é um escritor de ficção
barata, de histórias de amor para
revistas populares, mas diz ao
guarda que, na verdade, quer escrever sobre a sua própria vida,
contar as suas experiências -como os intérpretes de "Filhos". E se
serve do interrogatório para isso.
A certa altura, fala do encontro
que teve com um homem que o
queimava com pontas de cigarro,
e o policial, que vinha ouvindo tudo muito interessado, de repente
desconfia: "Você fez tudo parecer
tão real". O homossexual pede então que o guarda o deixe tirar a
camisa, para mostrar a marca,
como prova do que diz. A prova,
entretanto, já é um elemento
avançado do processo de sedução.
A sedução se confunde com a verossimilhança. A narrativa da experiência passada (real ou não) é
a criação do desejo, no presente. E
é fundamental que ambos, guarda e prisioneiro, entendam o que
está acontecendo ali entre os dois
para poderem participar do jogo.
É interessante contrapor os filmes de Zhang Yuan a um documentário como "Fahrenheit 9/11",
de Michael Moore, Palma de Ouro no último Festival de Cannes.
Ao contrário do cineasta chinês,
Moore não pode deixar a representação se tornar tema, não pode deixá-la assumir-se como representação, sob o risco de ver toda a sua construção de convencimento desmoronar. Não pode
deixar o espectador entender (como o guarda de "O Outro Lado
da Cidade Proibida") que está
sendo seduzido porque essa sedução não tem muita graça, já que
pressupõe a passividade intelectual do espectador.
É o princípio da propaganda.
Tanto faz o conteúdo (Bush pode
ser um fantoche corrupto e inconseqüente nas mãos dos interesses
econômicos de grandes corporações, ou não), o que conta é a manipulação retórica. Todos odiamos George W. Bush, então ficamos contentes com a montagem
ideológica das cenas, preferimos
não ver o primarismo dessa manipulação, já que ela é "para o
bem". Preferimos não pensar que
a mesma manipulação ginasiana
poderia ser feita a favor de Bush.
O conteúdo da propaganda é intercambiável. Na propaganda, a
representação (o desejo de quem
representa, de quem conta) precisa estar oculta.
Nos filmes de Zhang Yuan, sejam eles ficções ou não, representação e desejo são indissociáveis e
visíveis. A representação passa a
ser representada, ela é o tema dos
filmes. E é isso o que o torna um
cineasta ainda mais transgressor
em dias míopes como os de hoje.
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