São Paulo, terça-feira, 31 de agosto de 2004

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BERNARDO CARVALHO

O desejo de quem conta

A primeira vez que ouvi falar de Zhang Yuan foi num dos ensaios da coletânea "Rites of Realism" ("Ritos de Realismo", Duke University Press, 2002), organizada pela brasileira Ivone Margulies, professora de cinema do Hunter College, em Nova York. O texto, de autoria da própria organizadora, tratava da "reencenação" no cinema (indivíduos que, depois de passarem por uma experiência marcante na realidade, interpretam, como atores, os seus próprios papéis numa reconstituição cinematográfica daquela mesma experiência). O gênero, nem documentário nem simplesmente ficção, transgride "as fronteiras entre ser e representar". "Close Up" (1990), de Abbas Kiarostami, é um exemplo extraordinário.
Há duas semanas, um filme de Zhang Yuan foi exibido em São Paulo, entre os títulos de uma pequena retrospectiva do cinema chinês. Saí um pouco decepcionado. "O Outro Lado da Cidade Proibida" (1996) aparentemente não tem quase nada a ver com o outro filme do cineasta produzido no mesmo ano, "Filhos", sobre o qual Margulies discorria no seu ensaio.
Em "Filhos", uma família de Pequim interpreta os dez dias que precederam a decisão de internar o pai alcoólatra numa clínica. A proposta da "reencenação" partiu dos próprios intérpretes, vizinhos do cineasta. Cada um assumiu e reviveu diante das câmeras o seu próprio papel na realidade. O pai saiu da clínica para interpretar a si mesmo. A violência é reproduzida, representada em todo o seu desespero melodramático. Os filhos também são viciados e violentos. O privado se torna público. A representação realista ganha uma ambigüidade perversa e transgressora. O que à primeira vista pode parecer mero psicodrama, sessão de cura e exibicionismo, termina por se revelar bem mais complexo, embaralhando as certezas entre o real e a representação. O filme foi censurado na China, assim como "O Outro Lado da Cidade Proibida".
Zhang Yuan talvez seja o mais polêmico representante da chamada "sexta geração" do cinema chinês. É um cineasta da transgressão. Acabei entendendo que "O Outro Lado da Cidade Proibida", embora sendo pura ficção, nem por isso é menos perverso. Mesmo num filme que tem muito de teatral, Zhang Yuan ainda consegue expor a ambigüidade da representação, faz a encenação de uma encenação.
Detido à noite, num parque onde se encontra com outros homens, um homossexual é levado a uma delegacia e forçado a contar a sua história a um policial. Ao longo do interrogatório, de repente aflora a suspeita e a consciência difusa de que o que ele relata pode ser ficção, uma artimanha narrativa. O efeito é de certa forma análogo à ambigüidade instaurada pela "reencenação" em "Filhos".
O relato é resultado do desejo de quem fala e depende da sua capacidade de despertar em quem ouve o desejo de ouvir e acreditar. Todo o interrogatório acaba se revelando uma forma de sedução em que o homossexual, em princípio subjugado pelo policial, é no fundo quem tem as rédeas na mão. Ele é um escritor de ficção barata, de histórias de amor para revistas populares, mas diz ao guarda que, na verdade, quer escrever sobre a sua própria vida, contar as suas experiências -como os intérpretes de "Filhos". E se serve do interrogatório para isso.
A certa altura, fala do encontro que teve com um homem que o queimava com pontas de cigarro, e o policial, que vinha ouvindo tudo muito interessado, de repente desconfia: "Você fez tudo parecer tão real". O homossexual pede então que o guarda o deixe tirar a camisa, para mostrar a marca, como prova do que diz. A prova, entretanto, já é um elemento avançado do processo de sedução. A sedução se confunde com a verossimilhança. A narrativa da experiência passada (real ou não) é a criação do desejo, no presente. E é fundamental que ambos, guarda e prisioneiro, entendam o que está acontecendo ali entre os dois para poderem participar do jogo.
É interessante contrapor os filmes de Zhang Yuan a um documentário como "Fahrenheit 9/11", de Michael Moore, Palma de Ouro no último Festival de Cannes. Ao contrário do cineasta chinês, Moore não pode deixar a representação se tornar tema, não pode deixá-la assumir-se como representação, sob o risco de ver toda a sua construção de convencimento desmoronar. Não pode deixar o espectador entender (como o guarda de "O Outro Lado da Cidade Proibida") que está sendo seduzido porque essa sedução não tem muita graça, já que pressupõe a passividade intelectual do espectador.
É o princípio da propaganda. Tanto faz o conteúdo (Bush pode ser um fantoche corrupto e inconseqüente nas mãos dos interesses econômicos de grandes corporações, ou não), o que conta é a manipulação retórica. Todos odiamos George W. Bush, então ficamos contentes com a montagem ideológica das cenas, preferimos não ver o primarismo dessa manipulação, já que ela é "para o bem". Preferimos não pensar que a mesma manipulação ginasiana poderia ser feita a favor de Bush. O conteúdo da propaganda é intercambiável. Na propaganda, a representação (o desejo de quem representa, de quem conta) precisa estar oculta.
Nos filmes de Zhang Yuan, sejam eles ficções ou não, representação e desejo são indissociáveis e visíveis. A representação passa a ser representada, ela é o tema dos filmes. E é isso o que o torna um cineasta ainda mais transgressor em dias míopes como os de hoje.


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