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CARLOS HEITOR CONY
O discurso mais curto da história
Com voz esganiçada e trêmula, pronunciou: "Tá tudo muito confuso. Temo que não dê certo!"
ERA NO tempo das diligências,
ou mais distante ainda, quando nem diligências havia. Não
me refiro ao clássico de John Ford,
"Stagecoach", mas a outro tipo de
tempo e diligências.
Aí pelos finais dos anos 50, as cultas gentes se reuniam no Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), e, mediante módica contribuição mensal, podia-se participar das
tentativas de entender o Brasil e
procurar salvá-lo.
Eu não pertencia aos quadros redentores do Iseb. Era um alienado,
um vendido aos lacaios do imperialismo, um burguês decadente e
corrupto.
Não entendo por que, depois do
1º de abril de 1964, fui intimado a
prestar esclarecimentos a respeito
do funcionamento do Iseb. O coronel Gérson de Pina, que me interrogou durante cinco horas, achou que
eu escondia o jogo.
Não sei em que deu o chama-
do IPM do Iseb. Nem sei exata-
mente no que deu o próprio Iseb.
Teoricamente, o instituto nasceu
com a finalidade de dar uma base
conceitual, filosófica e pragmática
ao desenvolvimento lançado na
marra pelo presidente Juscelino
Kubitschek.
Encerrado o governo JK, o Iseb
teve tempo, enfim, para arrumar
conceitos, idéias, estratégias e táticas, mas aí vieram as crises da renúncia de Jânio Quadros, o breve
período parlamentarista, o governo
de Jango, nova crise e o movimento
de 64, que acabou com a alacridade
do pessoal que já se preparava para
distribuir terras entre lavradores e
assumir o controle dos bancos. A
turma do outro lado botou em campo uma ideologia que dizem ter nascido na Praia Vermelha.
A Sorbonne militar foi mais eficiente do que a Sorbonne civil das
ruas das Palmeiras. Sabemos no
que deu.
Lembro uma das vezes em que fui
ao Iseb, levado por um amigo e por
uma dor de cotovelo que me botou
no meio da noite sem ter aonde ir e
para que ir.
O presidente da mesa disse que a
reunião era para discutir uma nova
estratégia -e logo foi interrompido
por um sociólogo: não, não se tratava de uma estratégia, mas de uma tática. O aparte do sociólogo, mal se
entrava em campo, tumultuou o resto da partida e da noite.
Começaram discussões paralelas
sobre tática e estratégia, cinco horas
depois de iniciados os trabalhos, os
debates prosseguiam, colocaram-se
uma infinidade de posições intermediárias que não chegavam a ser
estratégicas nem táticas. Falou-se
até no bispo Sardinha, que foi comido pelos nossos índios.
Quando os primeiros raios do sol
passaram pelas palmeiras que rodeavam a sede, entrou em cena um
militar que trazia noticias frescas da
Amazônia, onde as multinacionais
haviam instalado um acampamento
maior do que Sergipe e Bahia juntas.
Foi então que um velhinho se levantou, ergueu o dedo trêmulo e com
voz trêmula pediu a palavra.
Houve estupor. O velhinho freqüentava o Iseb desde a fundação,
nunca falava nada, pagava as contribuições, assinava os manifestos, suportava as vigílias cívicas espartanamente, era dos primeiros a chegar,
dos últimos a sair. E nunca fora apanhado cochilando, ouvia todos os
oradores, batia palmas nas horas devidas. Que diabo teria ele a acrescentar ao debate, que luz traria às mentes que ali se esbofavam no cívico
dever de salvar a nação?
De qualquer forma, houve raiva
quando o velhinho pediu a palavra.
Voz esganiçada e trêmula, o velhinho pronunciou o discurso mais
curto daquela época:
-Tá tudo muito confuso. Temo
que não dê certo!
Passaram-se anos. Acredito que
esse velhinho, pelo natural rodar da
carruagem, já deve ter tirado suas
conclusões na eternidade -se lá no
assento etéreo onde subiu memória
desta vida se consente.
O que veio depois daquelas reuniões cívicas não foi mole. Volta e
meia, eu me encontrava com sobreviventes daquela sessão isebiana e
lembrávamos o velhinho, dando-lhe
póstuma e inútil razão.
O que antes se passava nos limites
de um casarão na rua das Palmeiras,
agora tem platéia maior que atinge
Congresso, sindicatos, a turma do
"Cansei", OAB, CNBB, Ibama e
grande mídia.
De minha parte, estou esperando
que surja outro velhinho (pode até
ser o mesmo) para constatar que "tá
tudo muito confuso, temo que não
dê certo!".
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