|
Texto Anterior | Índice
ARNALDO JABOR
Classe média é uma donzela sem namorado
A esquerda se considera o Bem.
A direita se considera o Bem. Ninguém bate no peito e grita: "sou o
Mal!". Ninguém é canalha e todo
mundo é "de esquerda", termo
que ostenta um halo luzente, como uma coroa de santinho. Ninguém quer ser "de direita", expressão com o estigma da peste,
da maldade contra o povo.
O esquerdista de punho cerrado
e carteirinha se sente justo e abençoado por um ideal e absolvido
por seus erros. Ele quer a purificação da sociedade, e tão nobre é esse anseio que ele pode ignorar os
incômodos detalhes da política legal, porque a santidade não precisa da prudência.
As complexidades da democracia, seus enleios, sua teia de responsabilidades o entediam e são
lidas como frescura, vacilação pequeno-burguesa e, no limite, traição. Hesitação é coisa de veado;
macho vai à luta em linha reta,
ignorando obstáculos. Assim, ele
não precisa saber como chegar
aos objetivos, pois se acha fadado
à vitória final que virá, um dia.
Quando? Ele não sabe, mas tem
fé, como um bispo da Pastoral. E
isto lhe dará força para aguentar
todas as pequenas derrotas, até o
dia da redenção. Como será essa
redenção?
Ela é uma vaga imagem de
massas cantando a igualdade nas
praças, punhos erguidos, todos regidos por chefes iluminados pela
idéia do Bem, passando por cima
da democracia, esta coisa labiríntica que enche o saco. A esquerda
ama uma categoria imaginária
chamada "povo", sinônimo ibérico de "proletariado". Povo: multidões sem teto, sem terra, sem cultura política.
Nossos pobres destituídos no
Brasil não opinam, não têm poder
algum, mas têm -para o esquerdista tradicional- a aura, o
charme franciscano do nada. Nada ter é santo. Eles são também a
metáfora de um mundo antigo e
simples, que fascina por sua pureza linear muito aquém do mercado, da globalização.
O horror da invencível circularidade do mundo ficaria então sob
controle, os sentimentos egoístas
ficariam unificados sob a idéia de
solidariedade, esse remotíssimo
sentimento humano. A esquerda
velha continua fixada na idéia de
unidade, de centro, de apagamento de diferenças, ignorando a intrincada sociedade com bilhões de
desejos e contradições.
O velho esquerdista sonha com
um passado de paz. Sua utopia é
regressiva, de marcha a ré. Eles
até aceitam provisoriamente a
complexidade do mundo para poder operar, mas sempre de olho no
tal futuro-passado simplório e
maoísta (talvez por isso o maoísmo, com sua pureza rural, foi tão
cultivado por intelectuais culpados). A esquerda não tem memória. Dá um frio na espinha vê-la
tender para os mesmos erros de 64
e 68, os mesmo planos descolados
da realidade.
Mais terrível ainda: as derrotas
e fracassos tendem a ser considerados santos martírios, evidências
de uma estranha cruzada que se
orgulha das derrotas. Quanto
mais sofrimento, mais merecimento. Esse masoquismo óbvio
não pode ser autocriticado pois a
esquerda velha tem pavor de cair
num temido desvio de direita -o
horror máximo! Qualquer esquerdista prefere ser chamado de sectário, em vez de traidor. Gostam
de gestos radicais, impensados
-coisas de machos. Confundem
heroísmo com martírio.
Em vez de se incluir no mundo
real, criticamente, revendo dogmas e táticas, a velha esquerda
continua, contra todas as evidências, querendo mudar, com enxadas e desejos, o mundo atual, como se muda o curso de um rio.
A esquerda acha que é o sujeito
da história, enquanto a direita sabe que a história não tem sujeito;
só tem objeto -o lucro. Pensar
que o mundo é um processo, uma
troca exasperante entre mercado
e desejo, tudo isso é visto como
uma chata etapa da democracia
burguesa, uma espécie de mal necessário para chegar ao poder. A
idéia de revolução continua entranhada em suas cabeças como
um tumor inoperável.
A esquerda confunde utopia
com projeto. Já a direita não tem
projeto, pois a idéia de projeto já é
de esquerda. O capitalista só tem
um projeto: ele mesmo. O burguês
não tem fim; ele é um fim em si
mesmo. "Um dia chegaremos lá!"
-diz a esquerda. O burguês já
chegou.
O esquerdista tradicional não
aceita que o capitalismo tenha
dominado o mundo, quando até
a China sabe disso. A grandeza de
uma nova esquerda teria de ser a
aceitação do possível, mas isso é
pouco sedutor. A esquerda brasileira existe como nostalgia da esquerda. O velho esquerdista acredita em solução, fim da história, e
não em processo. Por isso, ficaram
tão emputecidos com o Fukuyama, que lhes roubou o mito hegeliano.
Agora, esquerda e direita estão
diante da nova donzela -a classe
média. A classe média é o proletariado pós-moderno e só vai mudar o Brasil quem seduzi-la.
A nova donzela estava com FH,
mas agora está decepcionada e
sem namorado. O problema é que
o esquerdista tenta conquistar a
classe média através de seu amor
ao povo, mas como a classe média
não ama o povo, pois tem medo
de virar povo, só resta ao esquerdista bradar: "Pequenos-burgueses, uni-vos!", mas isso não ficaria
nem bem, principalmente porque
a classe média não gosta de revoluções, quer sossego e acha que
tem algo a perder. A nova donzela
gosta de demagogos moralistas,
de um novo Pai golpista.
A classe média é conservadora e
pode ser empolgada por um líder
de massas qualquer, assim tipo
Itamar (se inteligente), nosso plínio salgadinho cabeça-de-papel,
ou por algum caboclo como esse
Hugo Chávez que, macho e forte,
já empolga a veadagem enrustida
de muito jornalista e o golpismo
explícito do Lula, com sua "ruptura democrática".
Ou seja, graças a um presidente
tímido, a um Congresso de sabotadores e à resistência de 400 anos
de oligarquias escravistas, já começamos o novo círculo vicioso
do populismo utópico, com o Brasil "anestesiado, mas sem cirurgia", como dizia o Simonsen. Santo Deus!
Texto Anterior: Revista: "Medusa" traz três contos de Leminski Índice
|