São Paulo, Terça-feira, 31 de Agosto de 1999
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ARNALDO JABOR
Classe média é uma donzela sem namorado

A esquerda se considera o Bem. A direita se considera o Bem. Ninguém bate no peito e grita: "sou o Mal!". Ninguém é canalha e todo mundo é "de esquerda", termo que ostenta um halo luzente, como uma coroa de santinho. Ninguém quer ser "de direita", expressão com o estigma da peste, da maldade contra o povo.
O esquerdista de punho cerrado e carteirinha se sente justo e abençoado por um ideal e absolvido por seus erros. Ele quer a purificação da sociedade, e tão nobre é esse anseio que ele pode ignorar os incômodos detalhes da política legal, porque a santidade não precisa da prudência.
As complexidades da democracia, seus enleios, sua teia de responsabilidades o entediam e são lidas como frescura, vacilação pequeno-burguesa e, no limite, traição. Hesitação é coisa de veado; macho vai à luta em linha reta, ignorando obstáculos. Assim, ele não precisa saber como chegar aos objetivos, pois se acha fadado à vitória final que virá, um dia. Quando? Ele não sabe, mas tem fé, como um bispo da Pastoral. E isto lhe dará força para aguentar todas as pequenas derrotas, até o dia da redenção. Como será essa redenção?
Ela é uma vaga imagem de massas cantando a igualdade nas praças, punhos erguidos, todos regidos por chefes iluminados pela idéia do Bem, passando por cima da democracia, esta coisa labiríntica que enche o saco. A esquerda ama uma categoria imaginária chamada "povo", sinônimo ibérico de "proletariado". Povo: multidões sem teto, sem terra, sem cultura política.
Nossos pobres destituídos no Brasil não opinam, não têm poder algum, mas têm -para o esquerdista tradicional- a aura, o charme franciscano do nada. Nada ter é santo. Eles são também a metáfora de um mundo antigo e simples, que fascina por sua pureza linear muito aquém do mercado, da globalização.
O horror da invencível circularidade do mundo ficaria então sob controle, os sentimentos egoístas ficariam unificados sob a idéia de solidariedade, esse remotíssimo sentimento humano. A esquerda velha continua fixada na idéia de unidade, de centro, de apagamento de diferenças, ignorando a intrincada sociedade com bilhões de desejos e contradições.
O velho esquerdista sonha com um passado de paz. Sua utopia é regressiva, de marcha a ré. Eles até aceitam provisoriamente a complexidade do mundo para poder operar, mas sempre de olho no tal futuro-passado simplório e maoísta (talvez por isso o maoísmo, com sua pureza rural, foi tão cultivado por intelectuais culpados). A esquerda não tem memória. Dá um frio na espinha vê-la tender para os mesmos erros de 64 e 68, os mesmo planos descolados da realidade.
Mais terrível ainda: as derrotas e fracassos tendem a ser considerados santos martírios, evidências de uma estranha cruzada que se orgulha das derrotas. Quanto mais sofrimento, mais merecimento. Esse masoquismo óbvio não pode ser autocriticado pois a esquerda velha tem pavor de cair num temido desvio de direita -o horror máximo! Qualquer esquerdista prefere ser chamado de sectário, em vez de traidor. Gostam de gestos radicais, impensados -coisas de machos. Confundem heroísmo com martírio.
Em vez de se incluir no mundo real, criticamente, revendo dogmas e táticas, a velha esquerda continua, contra todas as evidências, querendo mudar, com enxadas e desejos, o mundo atual, como se muda o curso de um rio.
A esquerda acha que é o sujeito da história, enquanto a direita sabe que a história não tem sujeito; só tem objeto -o lucro. Pensar que o mundo é um processo, uma troca exasperante entre mercado e desejo, tudo isso é visto como uma chata etapa da democracia burguesa, uma espécie de mal necessário para chegar ao poder. A idéia de revolução continua entranhada em suas cabeças como um tumor inoperável.
A esquerda confunde utopia com projeto. Já a direita não tem projeto, pois a idéia de projeto já é de esquerda. O capitalista só tem um projeto: ele mesmo. O burguês não tem fim; ele é um fim em si mesmo. "Um dia chegaremos lá!" -diz a esquerda. O burguês já chegou.
O esquerdista tradicional não aceita que o capitalismo tenha dominado o mundo, quando até a China sabe disso. A grandeza de uma nova esquerda teria de ser a aceitação do possível, mas isso é pouco sedutor. A esquerda brasileira existe como nostalgia da esquerda. O velho esquerdista acredita em solução, fim da história, e não em processo. Por isso, ficaram tão emputecidos com o Fukuyama, que lhes roubou o mito hegeliano.
Agora, esquerda e direita estão diante da nova donzela -a classe média. A classe média é o proletariado pós-moderno e só vai mudar o Brasil quem seduzi-la.
A nova donzela estava com FH, mas agora está decepcionada e sem namorado. O problema é que o esquerdista tenta conquistar a classe média através de seu amor ao povo, mas como a classe média não ama o povo, pois tem medo de virar povo, só resta ao esquerdista bradar: "Pequenos-burgueses, uni-vos!", mas isso não ficaria nem bem, principalmente porque a classe média não gosta de revoluções, quer sossego e acha que tem algo a perder. A nova donzela gosta de demagogos moralistas, de um novo Pai golpista.
A classe média é conservadora e pode ser empolgada por um líder de massas qualquer, assim tipo Itamar (se inteligente), nosso plínio salgadinho cabeça-de-papel, ou por algum caboclo como esse Hugo Chávez que, macho e forte, já empolga a veadagem enrustida de muito jornalista e o golpismo explícito do Lula, com sua "ruptura democrática".
Ou seja, graças a um presidente tímido, a um Congresso de sabotadores e à resistência de 400 anos de oligarquias escravistas, já começamos o novo círculo vicioso do populismo utópico, com o Brasil "anestesiado, mas sem cirurgia", como dizia o Simonsen. Santo Deus!


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