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Rappers e cineastas politizam o soulman pacifista Hyldon, que volta em meio a revalorização do orgulho negro nas canções
ontem BLACK POWER hoje
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO
O rap redescobriu Hyldon, 51, e
eis ele de volta em pessoa. Autor e
intérprete do clássico "Na Rua, na
Chuva, na Fazenda (Casinha de
Sapé)", ele está de novo em estúdio, após nove anos de ausência.
A volta do soulman carioca nascido na Bahia acontece em meio a
uma nova safra de atitudes e canções de MPB que voltam a celebrar o orgulho "black power",
dissolvido desde a fase do "negro
é lindo" -o "black is beautiful" à
brasileira do início dos anos 70.
Nos novos CDs dos rappers cariocas MV Bill e Nega Gizza, trechos de "Na Rua, na Chuva, na
Fazenda" (75) foram incorporados como samplers e citações, em
registro bem mais sombrio que o
da doce balada de origem.
O cenário se completou quando
a mesma música foi usada, no formato original, para compor um
clímax violento do filme "Cidade
de Deus", que, além de polemizar
a sociopolítica das favelas brasileiras, também se esforça por trazer
de volta à tona a cultura musical
black daqui, do samba ao funk.
Hyldon fala da simpatia dos
criadores mais jovens por seu trabalho: "MV Bill me disse que os
pais dele namoravam ouvindo
"Na Rua, na Chuva, na Fazenda".
Quando fui ver "Cidade de Deus",
saí do cinema em êxtase por ter
visto um belíssimo filme brasileiro e orgulhoso de estar participando daquele trabalho com um
pedacinho da minha música".
Ele se envaidece com a preferência de rappers e cineastas engajados por sua obra, mas agora
dá de ombros a "Na Rua, na Chuva, na Fazenda", música e disco
reeditados em CD no ano passado. Prefere cuidar de promover a
reedição de seu segundo -e bem
mais obscuro- disco, "Deus, a
Natureza e a Música" (76).
O projeto deve sair em novembro e tem teor provavelmente inédito: descontente com detalhes
das gravações originais, Hyldon
foi ao estúdio para retocar vozes e
instrumentais, em busca de, segundo ele, "concluir um trabalho
que estava inacabado".
"Gravamos num estúdio que
havia sido recém-inaugurado pela Phonogram (hoje Universal) e
nos deu muitos problemas. A voz
ficava muito metálica, o som da
bateria saía horrível", justifica a
maquiagem de agora.
Curioso é que a gravadora que
encampa o projeto é a Universal, a
mesma que, em conflito aberto
com Hyldon em 76, ajudou a
abortar a continuidade de uma
carreira solo que começara à toda
com o romantismo pop-soul de
"Na Rua, na Chuva, na Fazenda".
Em meio às gravações, brigou
com todo mundo na gravadora,
incluídos o diretor artístico e pioneiro da bossa nova Roberto Menescal e o chefe de promoção e
hoje escritor Paulo Coelho.
Hyldon começa a relembrar:
"O primeiro disco era todo calminho e romântico. Minhas influências já eram todas malucas,
porque nasci na fronteira da Bahia com Pernambuco e tinha influência nordestina forte. Mas fui
gravar o segundo depois de uma
viagem aos Estados Unidos, que
me fez conhecer muita coisa e
querer experimentar mais".
Entre as ousadias "experimentais" estava dividir o acompanhamento musical com duas bandas
que depois entrariam para a história do soul e do funk nacionais:
Azymuth e Banda Black Rio.
"Menescal achou o disco uma
merda. Disse que o nome da música "Estrada Errada" resumia o
que era o disco. Mas para mim essa é a primeira música discothèque do Brasil, influenciada por
Barry White e aquela onda disco
que começava a rolar nos EUA."
Paulo Coelho protagonizou
com Hyldon outro foco de discórdia: "Eles queriam achar um filão
para me vender, e resolveram que
eu seria "o cantor dos tênis". Eu só
usava tênis, o que não era comum
naquela época. Para eles, eu seria
"o cara que tinha a coleção de tênis", em cima da história do Elton
John, que tinha não sei quantos
mil óculos. Original, não?".
Hyldon não gostou da idéia, e
botou para quebrar. "Se fosse hoje
eu aceitaria, ia ser legal. Mas na
época eu era radical, xiita musical.
Aquilo foi uma facada para mim.
Recusei, e minha relação com a
gravadora se deteriorou. Era ímpeto de juventude mesmo, "vou
fazer o contrário do que eles querem". Eu tinha era que ter um analista, um psicólogo. Imagine, o cara brigar com a multinacional poderosíssima", reavalia.
Política, censura, drogas
Outro episódio de "Deus, a Natureza e a Música" envolve a censura militar. Embora Hyldon continue sendo até hoje um artista resistente à idéia de politizar sua
música ("sou um pacifista, não
misturo música com política, e,
como eu fazia um trabalho romântico, a crítica da época torcia
o nariz"), teve censurada ali uma
música quase toda instrumental,
que de texto só continha a frase
"cuidado para não virar jazz!".
"A música quase nem tinha letra, sei lá se pensaram que "virar
jazz" significava "virar bagunça".
Queriam que eu fosse a Brasília
explicar a música, mas fiquei me
borrando de medo e não fui. Preferi tirar do disco. Agora também
não quis recolocar, porque não
tem mais sentido. Era só uma birrinha que havia entre os caras do
soul e do jazz."
Nas voltas que o mundo dá, hoje Hyldon vê seus temas de rua,
chuva, fazenda, Deus, natureza e
música serem subvertidos em filmes sobre violência e raps sobre
drogas ("dizem que sou louco",
cita MV Bill, ambíguo). E não se
opõe, até porque conhece problemas como aqueles de perto.
Nasce desse setor a fatia de autocrítica do artista ao comentar as
agruras que teve com gravadoras
ao longo dos anos 70.
"Quis refazer as vozes agora
porque naquela época eu estava
cantando mal. O disco seguinte,
da CBS, estraguei nos tons gritados. A situação amorosa me desafinava, Tim Maia sempre me falava que eu estava escolhendo o
tom errado e eu não ouvia", diz,
conectando desfoques de voz ao
uso de drogas.
"Até 75 ou 76, não havia cocaína
nos estúdios, só maconha. As pessoas se reuniam, se juntavam para
fumar e tocar juntas, se aprimoravam ouvindo uns aos outros. A
cocaína entrou nos estúdios de
uma maneira que acabou com a
sensibilidade, deixou todo mundo individualista. Isso ajudou a
tumultuar mais nossa cabeça."
Ainda que tais temas não estivessem explícitos em sua obra,
justamente nele foi chegar a nova
produção engajada do Brasil, que
faz da engrenagem das drogas um
de seus pontos referenciais.
E Hyldon, de seu canto, defende
a profanação de "Deus, a Natureza e a Música" pelo próprio autor.
"Era uma mancha que eu tinha:
Conseguir estar vivo e com a cabeça boa para refazer o disco é um
privilégio para mim".
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