São Paulo, sexta-feira, 31 de outubro de 2008

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Crítica/"A Viagem do Elefante"

Defeitos ofuscam qualidades em novo livro

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

José Saramago vem travando uma batalha com seu narrador há muito tempo. Em certo momento, ele quis vencê-la declarando que o adversário não existia, que só ele, o autor, era responsável por tudo o que produzia. A discussão pode parecer meio esotérica para o leitor comum, mas é impressionante como ela é decisiva para determinar o sucesso ou o insucesso de tudo que ele faz desde "Levantado do Chão", obra de 1980 na qual inaugurou o seu jeito peculiar de pontuar o texto.
Saramago tem duas marcas indiscutíveis como escritor: o manejo magistral da língua portuguesa e uma grande capacidade fabuladora. Quando as duas atuam em equilíbrio, surge o romancista que um crítico do porte de João Alexandre Barbosa mais de uma vez tratou como um dos nossos maiores prosadores no século 20. É o que acontece em "O Ano da Morte de Ricardo Reis", "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" ou "Ensaio sobre a Cegueira" (apesar de seu desfecho). Nesses casos, para voltar à tal batalha, o narrador ganha. Em outros livros, contudo, Saramago parece fascinado demais por sua própria voz e consegue vencer a luta, com evidente prejuízo de sua criação, como ocorre, para lembrar um caso recente, em "Ensaio sobre a Lucidez".

Defeitos
Neste "A Viagem do Elefante", percebe-se que o autor teve a intuição adequada ao colocar como subtítulo do volume a palavra "conto", já que a travessia do simpático paquiderme Salomão/Solimão e de seu tratador, Subhro/Fritz, de Portugal à Áustria talvez até desse um romance estupendo nas mãos leves de um escritor como Italo Calvino, mas não comporta as mais de 264 páginas utilizadas por Saramago.
Só esse inchaço desnecessário explica por que passagens como a seguinte possam permanecer no texto: "O maníaco dos barritos começou a perder consistência e volume, a encolher-se, tornou-se meio redondo, transparente como uma bola de sabão, se é que os péssimos sabões que se fabricam neste tempo são capazes de formar aquelas maravilhas cristalinas que alguém teve o gênio de inventar, e de repente desapareceu de vista. Fez plof e sumiu-se. Há onomatopéias providenciais. Imagine-se que tínhamos de descrever o processo de sumição do sujeito com todos os pormenores. Seriam precisas, pelo menos, dez páginas. Plof". Como ela, há inúmeras outras intromissões dessa voz narrativa tão "autoral", alongando muito o que não precisaria ser alongado e tirando um tanto do prazer da leitura de uma história que teria tudo para ser deliciosa.
Não é muito justo julgar um livro pelo que ele poderia ter sido, mas, infelizmente, como diz essa voz a determinada altura do texto, "somos, cada vez mais, os defeitos que temos, não as qualidades".

ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e autor de "Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago" (ed. Globo).


A VIAGEM DO ELEFANTE
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 42 (264 págs.)
Avaliação: regular



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