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Crítica/"A Viagem do Elefante"
Defeitos ofuscam qualidades em novo livro
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
José Saramago vem travando uma batalha com
seu narrador há muito
tempo. Em certo momento, ele
quis vencê-la declarando que o
adversário não existia, que só
ele, o autor, era responsável por
tudo o que produzia. A discussão pode parecer meio esotérica para o leitor comum, mas é
impressionante como ela é decisiva para determinar o sucesso ou o insucesso de tudo que
ele faz desde "Levantado do
Chão", obra de 1980 na qual
inaugurou o seu jeito peculiar
de pontuar o texto.
Saramago tem duas marcas
indiscutíveis como escritor: o
manejo magistral da língua
portuguesa e uma grande capacidade fabuladora. Quando as
duas atuam em equilíbrio, surge o romancista que um crítico
do porte de João Alexandre
Barbosa mais de uma vez tratou como um dos nossos maiores prosadores no século 20. É
o que acontece em "O Ano da
Morte de Ricardo Reis", "O
Evangelho Segundo Jesus Cristo" ou "Ensaio sobre a Cegueira" (apesar de seu desfecho).
Nesses casos, para voltar à tal
batalha, o narrador ganha. Em
outros livros, contudo, Saramago parece fascinado demais por
sua própria voz e consegue vencer a luta, com evidente prejuízo de sua criação, como ocorre,
para lembrar um caso recente,
em "Ensaio sobre a Lucidez".
Defeitos
Neste "A Viagem do Elefante", percebe-se que o autor teve
a intuição adequada ao colocar
como subtítulo do volume a palavra "conto", já que a travessia
do simpático paquiderme Salomão/Solimão e de seu tratador,
Subhro/Fritz, de Portugal à
Áustria talvez até desse um romance estupendo nas mãos leves de um escritor como Italo
Calvino, mas não comporta as
mais de 264 páginas utilizadas
por Saramago.
Só esse inchaço desnecessário explica por que passagens
como a seguinte possam permanecer no texto: "O maníaco
dos barritos começou a perder
consistência e volume, a encolher-se, tornou-se meio redondo, transparente como uma bola de sabão, se é que os péssimos sabões que se fabricam
neste tempo são capazes de formar aquelas maravilhas cristalinas que alguém teve o gênio
de inventar, e de repente desapareceu de vista. Fez plof e sumiu-se. Há onomatopéias providenciais. Imagine-se que tínhamos de descrever o processo de sumição do sujeito com
todos os pormenores. Seriam
precisas, pelo menos, dez páginas. Plof".
Como ela, há inúmeras outras intromissões dessa voz
narrativa tão "autoral", alongando muito o que não precisaria ser alongado e tirando um
tanto do prazer da leitura de
uma história que teria tudo para ser deliciosa.
Não é muito justo julgar um
livro pelo que ele poderia ter sido, mas, infelizmente, como diz
essa voz a determinada altura
do texto, "somos, cada vez
mais, os defeitos que temos,
não as qualidades".
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura
da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
(EACH) da USP e autor de "Pessoa, Borges e a
Inquietude do Romance em O Ano da Morte de
Ricardo Reis, de José Saramago" (ed. Globo).
A VIAGEM DO ELEFANTE
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 42 (264 págs.)
Avaliação: regular
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