São Paulo, Sexta-feira, 31 de Dezembro de 1999


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DISCO - CRÍTICA
Wynton Marsalis é único no solo de trumpete

ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas


Depois de um início modesto, obedientemente no meio do conjunto, a sua entrada é espetacular: uma nota repetida ("flutter-tongue"), por nada menos do que dez segundos, na região aguda, antes de descer novamente ao convívio dos outros imortais. Wynton Marsalis é, por consenso, o maior virtuose do trumpete em atividade. Mas sua paixão pela música parece ainda maior do que a paixão pelo instrumento; e nesse novo disco se desdobra em homenagens ao precursor Thelonious Monk (1917-82).
Compositor, intérprete, regente, arranjador, produtor, professor e diretor musical: não há uma função que Marsalis não tenha dominado, mais cedo ou mais tarde. Geralmente mais cedo: tocava trumpete com 6 anos e em 1980, com 19, já era membro dos Jazz Messengers de Art Blakey. Em 1984, ele ganharia de uma vez só dois prêmios Grammy: melhor disco de jazz e melhor de clássico (concertos barrocos, com a New Philarmonic Orchestra). Em 1990, Marsalis foi nomeado diretor musical do Lincoln Center, onde formou a sua própria orquestra.
Autor de peças orquestrais, música para balés e trilhas de filmes, grande divulgador musical em escolas e na televisão, Marsalis assume hoje um papel no jazz semelhante ao que teve Leonard Bernstein na música clássica, ou Pierre Boulez na contemporânea. Talvez não seja, ele mesmo, o centro do mundo, mas está no centro de tudo e sabe usar essa perspectiva privilegiada a seu favor e no favor da música.

A coleção
"Marsalis Plays Monk" é o volume quatro da coleção "Swinging into the 21st": sete CDs, compondo juntos uma imagem do trumpetista em suas várias faces. Aqui ele toca num octeto, em arranjos pensados como reedição das artes de Louis Armstrong, na década de 20. A mistura é inesperada.
Armstrong-Monk-Marsalis pode não soar como a sequência mais natural; mas o resultado soa, sim, naturalmente exato, e inverte, em alguma medida, o vetor da influência.
Nenhum rigor, nenhum virtuosismo, seja individual ou de conjunto às duas coisas, nesse caso poderia fazer páreo ao anarquismo de Monk.
Seguidores mais devotos do pianista vão reclamar da beleza controlada desses solos, obviamente ensaiados, e das elegâncias desenhadas de duos, trios e quartetos. Trumpete, saxofones e trombone movem-se juntos como bailarinos no palco, e são capazes de provocar o mesmo calafrio de algum gesto complexo descrito ao mesmo tempo por dois ou três ou quatro corpos.
Essas vertigens estão muito longe da música original de Monk, um músico de transitoriedades, para quem não existe pensamento musical se não for um pensamento se fazendo.
Traduzida para a bonomia de Marsalis, essa música perde densidade, mas ganha em superfície, e vai se desvelar em outras formas, que são e não as mesmas do original. Aburguesou-se, em alguma medida; mas também se multiplicou em riquezas e sutilezas, e outras rimas musicais. O pianista Eric Reed, por exemplo, faz de "Brilliant Corners" um exercício maravilhoso de variações da métrica.
O sax alto de Wessell Anderson parece, aqui e ali, o sonho de vida livre de algum clarinete; e o baterista Herlin Riley é capaz de reger o conjunto e reinventar sozinho os destinos de piano e trumpete.
Numa das melhores faixas, "Worry Later", o septeto parece estar comemorando alguma festa particular, gravada por acaso: o efeito é de um bom humor irresistível, cheio de gargalhadas nos metais. E os silêncios e cortes e síncopes de "Evidence" aproximam Monk das assimetrias modernistas de Stravinski (1882-1971) -comparação que sugere a seriedade das ambições de Marsalis.

Referências
A referência a Stravinski, aliás, não é fortuita. Outro volume da série traz a música completa de "A Fiddler's Tale", composta por Marsalis a partir de "A História do Soldado" (1918). E uma suíte dessa partitura acompanha a gravação de "At the Octoroon Balls", um quarteto de cordas, dividido espiritualmente entre Dvorák, Bartók e Nova Orleans. Para um ouvinte chegado do lado dos clássicos, o resultado soa menos convincente do que a metamorfose de Monk.
A mistura de gêneros sofre mais aqui da mistura de eras e não chega a se cristalizar em novidade. Para quem vem do outro lado, o impacto talvez seja maior; e pode elevar a música para além do meramente bem-escrito.
Marsalis é mais Marsalis nos solos de trumpete, em suas recriações de Monk, que ele sempre toca com uma fluência desproporcional à dificuldade que ele mesmo criou.
Ninguém resiste à exibição de semicolcheias em "Four in One" se descarrilhando e recarrilhando para cima e para baixo em alta velocidade, entremeadas de fragmentos de blues. Nesses momentos, o trumpete transcende o seu próprio senso de ordem e acende a música de entusiasmo.
O prazer físico de tocar serve de imagem e objeto de algum prazer maior, adivinhado. O que ele adivinhou, Monk sabia; e cada um de nós, agora, que tente adivinhar como puder.


Avaliação:    


CD: "Marsalis Plays Monk" (coleção "Swing into the 21st, composta por 7 CDs) Compositor: Wynton Marsalis Gravadora: Columbia Quanto: R$ 37,47 (em média)


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