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MARCELO COELHO
Até os santos precisam se alimentar
Não sei se ainda existe o hábito de dizer "São Brás!"
quando alguém engasga ou tem
uma crise de tosse. Quando eu era
criança, não falhava. Vinham os
tapinhas nas costas e o nome do
santo, que eu não entendia direito: era algo como "sombrás" ou
"assombrás".
O substantivo fazia-me pensar
numa estatal em que trabalhassem, talvez, os parentes malvados
do Gasparzinho. Mas aí a palavra
teria de ser usada em casos de soluço; e não me constava que engasgos também se curassem com
susto. Perplexidades da infância.
De indubitável, acho, apenas a
ineficácia do recurso.
Falei sobre santos no artigo da
semana passada, mas não tive espaço para citar um livro importante e muito bonito que foi lançado neste ano pela Companhia
das Letras, com tradução direta
do latim por Hilário Franco Jr. É
a "Legenda Áurea", de Jacopo de
Varazze, arcebispo de Gênova,
que viveu, acredita-se, entre 1229
e 1298. São mais de mil páginas,
contando as histórias de uma
multidão de santos, dos mais famosos aos mais obscuros.
O leitor encontrará ali as vidas
de são Gordiano e de são Jorge.
De são Paulo e de santo Abdão.
De santa Dária, de são Forseu e
de santa Praxedes (o nome, aqui,
é feminino). Do silencioso e
proustiano são Lupo e do não tão
desconhecido são Juliano, o Hospitaleiro, que, além de matar o
pai e a mãe, inspirou um conto de
Flaubert.
A mistura do maravilhoso e do
simples, da crença ingênua e da
complicação teológica, do horrível e do bom, faz da "Legenda Áurea" uma obra acessível, misteriosa e vasta como uma catedral.
Leio a história de são Brás.
Devido à sua doçura e à sua
bondade, foi eleito bispo. Eram os
tempos do imperador Diocleciano. Os cristãos, claro, sofriam perseguições. Brás refugiou-se numa
caverna, onde passou a viver como eremita.
Por mais que jejuem, mesmo os
santos precisam se alimentar. Os
passarinhos, diz o livro, traziam-lhe comida no bico; o que não devia ser muito, mas bastava. E só
voltavam para seus afazeres depois que o santo os abençoasse.
Talvez seguindo os pássaros,
mas isso o livro não diz, os soldados do imperador acabaram encontrando o eremita. Foram recebidos com bom humor e com a
brandura que já estava contida
em seu nome: "Sejam bem-vindos, meus filhos, vejo que Deus
não me esqueceu".
Omito os detalhes medonhos do
martírio; é como se o texto representasse, pelo rápido contraste
entre o horror e a delicadeza das
cenas sucessivas, o abismo a separar inferno e paraíso.
Os milagres de são Brás não são
dos mais dignos de nota. Interessa-nos o que vai assim narrado:
"Uma mulher levou até ele seu filho, que estava morrendo por
causa de uma espinha entalada
na garganta, e pediu-lhe em lágrimas a cura do menino. São
Brás colocou as mãos sobre a cabeça dele e fez uma prece para
que aquela criança, assim como
todos os que pedissem o que quer
que fosse em seu nome, tivesse
saúde, e no mesmo instante o menino ficou curado".
Logo em seguida, atendendo a
outra mulher desesperada, são
Brás tratou de recuperar-lhe um
porco, que havia sido raptado por
um lobo. Tempos longínquos, em
que o sumiço de um suíno desencadeava a intervenção de um
santo...
Seja como for, são Brás notabilizou-se na proteção aos engasgados. Mas hoje, 31 de dezembro, é
dia de são Silvestre, e a "Legenda
Áurea" nos conta o principal milagre desse santo, ocorrido exatamente à meia-noite. Tem a ver
com engasgos também.
Depois de muitas arbitrariedades, o prefeito romano Tarquínio
ordenou a Silvestre que homenageasse os deuses pagãos. Caso
contrário, passaria pelos mais diversos suplícios. A resposta do
santo foi dura: "Insensato, você
morrerá esta noite, depois sofrerá
tormentos eternos e assim, quer
queira, quer não, reconhecerá o
verdadeiro Deus que adoramos".
Silvestre foi preso e Tarquínio
foi jantar. "Ao comer", registra
Jacopo de Varazze, "ele ficou engasgado com uma espinha de peixe que não conseguiu nem expelir
nem engolir. Ele morreu à meia-noite, e Silvestre, que era amado
tanto pelos cristãos quanto pelos
pagãos, foi libertado para grande
alegria de todos."
Outro engasgo, então?! E de funestas consequências desta vez...
Achei curiosa a simetria entre as
duas legendas, que se prolonga
em outro pormenor. São Brás recuperou um porco; já Silvestre,
em outra ocasião, conseguiu ressuscitar "um touro ferocíssimo",
que havia sido vitimado por um
encantamento. Silvestre falou palavras cristãs ao ouvido do touro;
"ele levantou-se, e mansamente
foi embora".
Certamente, animais como porcos e touros deveriam constituir
bens preciosos na época. E quanta
gente, hoje em dia, não pede ajuda aos santos para recuperar um
carro roubado ou uma agenda
perdida? Fiquei em todo caso
pensando nos engasgos. Talvez
fossem mesmo comuns e perigosos -numa época de penúria alimentar e de maus modos à mesa.
Não há como não sorrir diante
da ingenuidade do texto. Mas por
pouco (acho) não caí eu mesmo
em ingenuidade. Lembrei-me que
um dos símbolos de Jesus Cristo é
justamente o peixe -de modo
que engasgar com uma espinha,
no caso, deve estar significando
mais a rejeição espiritual ao
Evangelho do que alguma irritação na epiglote.
E quem sabe se o porco fugido e
o touro ressuscitado não seriam
imagens da alma pecadora, que
santos como Silvestre e Brás conseguiram recuperar? O colorido
medieval e rústico dessas imagens
não elimina as sutilezas da teologia.
Ocorre-me, entretanto, outra
coisa. A ressurreição do touro talvez simbolize também a passagem do ano. Aquele animal feroz,
abatido a poder de sortilégio e renascido manso por milagre, parece-se com cada ano atribuladíssimo que vivemos; finalmente acaba. Daí ressurge, depois de são Silvestre, mais tranquilo.
É o que sempre esperamos; fica
sendo este o meu voto, pelo menos. E que ninguém morra de engasgo nos excessos do Réveillon.
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