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São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

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MARCELO COELHO

Até os santos precisam se alimentar

Não sei se ainda existe o hábito de dizer "São Brás!" quando alguém engasga ou tem uma crise de tosse. Quando eu era criança, não falhava. Vinham os tapinhas nas costas e o nome do santo, que eu não entendia direito: era algo como "sombrás" ou "assombrás".
O substantivo fazia-me pensar numa estatal em que trabalhassem, talvez, os parentes malvados do Gasparzinho. Mas aí a palavra teria de ser usada em casos de soluço; e não me constava que engasgos também se curassem com susto. Perplexidades da infância. De indubitável, acho, apenas a ineficácia do recurso.
Falei sobre santos no artigo da semana passada, mas não tive espaço para citar um livro importante e muito bonito que foi lançado neste ano pela Companhia das Letras, com tradução direta do latim por Hilário Franco Jr. É a "Legenda Áurea", de Jacopo de Varazze, arcebispo de Gênova, que viveu, acredita-se, entre 1229 e 1298. São mais de mil páginas, contando as histórias de uma multidão de santos, dos mais famosos aos mais obscuros.
O leitor encontrará ali as vidas de são Gordiano e de são Jorge. De são Paulo e de santo Abdão. De santa Dária, de são Forseu e de santa Praxedes (o nome, aqui, é feminino). Do silencioso e proustiano são Lupo e do não tão desconhecido são Juliano, o Hospitaleiro, que, além de matar o pai e a mãe, inspirou um conto de Flaubert.
A mistura do maravilhoso e do simples, da crença ingênua e da complicação teológica, do horrível e do bom, faz da "Legenda Áurea" uma obra acessível, misteriosa e vasta como uma catedral. Leio a história de são Brás.
Devido à sua doçura e à sua bondade, foi eleito bispo. Eram os tempos do imperador Diocleciano. Os cristãos, claro, sofriam perseguições. Brás refugiou-se numa caverna, onde passou a viver como eremita.
Por mais que jejuem, mesmo os santos precisam se alimentar. Os passarinhos, diz o livro, traziam-lhe comida no bico; o que não devia ser muito, mas bastava. E só voltavam para seus afazeres depois que o santo os abençoasse.
Talvez seguindo os pássaros, mas isso o livro não diz, os soldados do imperador acabaram encontrando o eremita. Foram recebidos com bom humor e com a brandura que já estava contida em seu nome: "Sejam bem-vindos, meus filhos, vejo que Deus não me esqueceu".
Omito os detalhes medonhos do martírio; é como se o texto representasse, pelo rápido contraste entre o horror e a delicadeza das cenas sucessivas, o abismo a separar inferno e paraíso.
Os milagres de são Brás não são dos mais dignos de nota. Interessa-nos o que vai assim narrado: "Uma mulher levou até ele seu filho, que estava morrendo por causa de uma espinha entalada na garganta, e pediu-lhe em lágrimas a cura do menino. São Brás colocou as mãos sobre a cabeça dele e fez uma prece para que aquela criança, assim como todos os que pedissem o que quer que fosse em seu nome, tivesse saúde, e no mesmo instante o menino ficou curado".
Logo em seguida, atendendo a outra mulher desesperada, são Brás tratou de recuperar-lhe um porco, que havia sido raptado por um lobo. Tempos longínquos, em que o sumiço de um suíno desencadeava a intervenção de um santo...
Seja como for, são Brás notabilizou-se na proteção aos engasgados. Mas hoje, 31 de dezembro, é dia de são Silvestre, e a "Legenda Áurea" nos conta o principal milagre desse santo, ocorrido exatamente à meia-noite. Tem a ver com engasgos também.
Depois de muitas arbitrariedades, o prefeito romano Tarquínio ordenou a Silvestre que homenageasse os deuses pagãos. Caso contrário, passaria pelos mais diversos suplícios. A resposta do santo foi dura: "Insensato, você morrerá esta noite, depois sofrerá tormentos eternos e assim, quer queira, quer não, reconhecerá o verdadeiro Deus que adoramos".
Silvestre foi preso e Tarquínio foi jantar. "Ao comer", registra Jacopo de Varazze, "ele ficou engasgado com uma espinha de peixe que não conseguiu nem expelir nem engolir. Ele morreu à meia-noite, e Silvestre, que era amado tanto pelos cristãos quanto pelos pagãos, foi libertado para grande alegria de todos."
Outro engasgo, então?! E de funestas consequências desta vez... Achei curiosa a simetria entre as duas legendas, que se prolonga em outro pormenor. São Brás recuperou um porco; já Silvestre, em outra ocasião, conseguiu ressuscitar "um touro ferocíssimo", que havia sido vitimado por um encantamento. Silvestre falou palavras cristãs ao ouvido do touro; "ele levantou-se, e mansamente foi embora".
Certamente, animais como porcos e touros deveriam constituir bens preciosos na época. E quanta gente, hoje em dia, não pede ajuda aos santos para recuperar um carro roubado ou uma agenda perdida? Fiquei em todo caso pensando nos engasgos. Talvez fossem mesmo comuns e perigosos -numa época de penúria alimentar e de maus modos à mesa.
Não há como não sorrir diante da ingenuidade do texto. Mas por pouco (acho) não caí eu mesmo em ingenuidade. Lembrei-me que um dos símbolos de Jesus Cristo é justamente o peixe -de modo que engasgar com uma espinha, no caso, deve estar significando mais a rejeição espiritual ao Evangelho do que alguma irritação na epiglote.
E quem sabe se o porco fugido e o touro ressuscitado não seriam imagens da alma pecadora, que santos como Silvestre e Brás conseguiram recuperar? O colorido medieval e rústico dessas imagens não elimina as sutilezas da teologia.
Ocorre-me, entretanto, outra coisa. A ressurreição do touro talvez simbolize também a passagem do ano. Aquele animal feroz, abatido a poder de sortilégio e renascido manso por milagre, parece-se com cada ano atribuladíssimo que vivemos; finalmente acaba. Daí ressurge, depois de são Silvestre, mais tranquilo.
É o que sempre esperamos; fica sendo este o meu voto, pelo menos. E que ninguém morra de engasgo nos excessos do Réveillon.

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