São Paulo, sábado, 31 de dezembro de 2005

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RODAPÉ

Memórias pantagruélicas

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Fome de Paris - Memórias de um Gourmet Apaixonado" reúne as memórias gastronômicas de A. J. Liebling, jornalista da revista "The New Yorker" que, em suas temporadas na França, testemunhou os últimos momentos de glória dos restaurantes gauleses. Existem dois bons motivos -opostos, porém complementares- para ler o livro hoje.
Primeiro: se suas vísceras já estão saturadas por celebrações natalinas e festas de fim de ano, as crônicas de Liebling são uma forma mais metafísica (e hepaticamente segura) de prolongar os prazeres da mesa.
Segundo: os jantares e pratos descritos por Liebling lembram um pouco o banquete do filme "A Festa de Babette"; ou seja, são tão sublimes que despertam um desejo que não pode ser satisfeito por qualquer iguaria disponível nos restaurantes, mesmo aqueles que, por causa do preço, só são freqüentados por "pessoas jurídicas". O que, mais uma vez, faz da leitura um refúgio para fígados estafados.
Mas, antes que o leitor alegue que um livro desse gênero caberia melhor na coluna de Josimar Melo (crítico de gastronomia da Folha), é bom dizer que há uma terceira razão para ler "Fome de Paris": além de renomado glutão, Liebling foi um jornalista lendário, encarnação de uma era de refinamento e espírito, em que a sofisticação intelectual era temperada por doses generosas de humor e auto-ironia.
Ao descrever um empadão grosseiro recheado de rins e cogumelos, Liebling diz que é "o tipo de coisa que se pode encontrar num hotel de intelectuais de Nova York". Para definir a diferença entre a zonas culinárias da França, recorre à impossibilidade de gostar ao mesmo tempo de Racine e Stendhal. E, falando de uma garrafa sobre a qual pairam dúvidas, escreve: "Como Charles Dickens, o vinho resistiu ao tempo".
Seus textos são repletos de tiradas cujo excesso pode agradar ou irritar, mas jamais entediam. Há basicamente dois momentos no livro. No final dos anos 20, Liebling vai a Paris como um estudante da Sorbonne que dissipa a mesada paterna numa obstinada peregrinação por adegas e bistrôs. E, às vésperas e logo depois da Segunda Guerra, retorna à capital francesa como correspondente internacional, para constatar uma mudança de hábitos que concorre para a decadência da cozinha tradicional do país.
Liebling extrai de suas agruras de universitário famélico um sentido formativo: "Um homem que seja rico na adolescência está quase condenado a ser um diletante à mesa. Isso não é porque todos os milionários sejam idiotas, mas porque não são impelidos a experimentar. À semelhança da psicanálise, no processo de aprender a comer, o cliente, para lucrar, tem que ser sensível ao custo".
Mais do que um gastrônomo ou "gourmet" afetado, ele é um comensal fascinado pela simplicidade metamorfoseada em tradição, cujo emblema é o "pot au feu" -o caldo francês que galgou do fogão campestre para a panela dos grandes chefes. "É a cozinha burguesa em sua melhor expressão, ou a cozinha camponesa elevada a seu ponto mais alto possível", segundo a frase de Waverly Root.
Liebling constrói teorias mirabolantes para o fim dessa era de opulência, minada por uma obsessão com saúde e peso que nos é familiar. "Antes da Primeira Guerra, os médicos da França tinham sido uma estirpe submissa e bem-educada, que reconhecia que seu papel era facilitar a gulodice, e não desencorajá-la. Eles voltaram à vida civil cheios de um novo sentido de autoridade, adquirido com o hábito da amputação. E, em vez de continuarem, como no passado, a aliviar a indigestão, a assediar a dispepsia e a remediar os ataques de gota, propuseram a amputação de três ou quatro pratos dos repastos habituais de seus pacientes."
Diante desse quadro melancólico, sobram as pantagruélicas descrições de "alcachofras num pedestal de foie gras", cotovias e guisados de javali -que, como diria Luis Fernando Verissimo, fazem com que uma lágrima de emoção escorra do canto dos lábios.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Fome de Paris
   
Autor:
A. J. Liebling
Tradução: Alice Xavier
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 39,90 (192 págs.)


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