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RODAPÉ
Memórias pantagruélicas
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Fome de Paris - Memórias
de um Gourmet Apaixonado" reúne as memórias gastronômicas de A. J. Liebling, jornalista
da revista "The New Yorker" que,
em suas temporadas na França,
testemunhou os últimos momentos de glória dos restaurantes gauleses. Existem dois bons motivos
-opostos, porém complementares- para ler o livro hoje.
Primeiro: se suas vísceras já estão saturadas por celebrações natalinas e festas de fim de ano, as
crônicas de Liebling são uma forma mais metafísica (e hepaticamente segura) de prolongar os
prazeres da mesa.
Segundo: os jantares e pratos
descritos por Liebling lembram
um pouco o banquete do filme "A
Festa de Babette"; ou seja, são tão
sublimes que despertam um desejo que não pode ser satisfeito por
qualquer iguaria disponível nos
restaurantes, mesmo aqueles que,
por causa do preço, só são freqüentados por "pessoas jurídicas". O que, mais uma vez, faz da
leitura um refúgio para fígados estafados.
Mas, antes que o leitor alegue
que um livro desse gênero caberia
melhor na coluna de Josimar Melo (crítico de gastronomia da Folha), é bom dizer que há uma terceira razão para ler "Fome de Paris": além de renomado glutão,
Liebling foi um jornalista lendário, encarnação de uma era de refinamento e espírito, em que a sofisticação intelectual era temperada por doses generosas de humor
e auto-ironia.
Ao descrever um empadão
grosseiro recheado de rins e cogumelos, Liebling diz que é "o tipo
de coisa que se pode encontrar
num hotel de intelectuais de Nova
York". Para definir a diferença
entre a zonas culinárias da França, recorre à impossibilidade de
gostar ao mesmo tempo de Racine e Stendhal. E, falando de uma
garrafa sobre a qual pairam dúvidas, escreve: "Como Charles Dickens, o vinho resistiu ao tempo".
Seus textos são repletos de tiradas cujo excesso pode agradar ou
irritar, mas jamais entediam. Há
basicamente dois momentos no
livro. No final dos anos 20, Liebling vai a Paris como um estudante da Sorbonne que dissipa a
mesada paterna numa obstinada
peregrinação por adegas e bistrôs.
E, às vésperas e logo depois da Segunda Guerra, retorna à capital
francesa como correspondente
internacional, para constatar uma
mudança de hábitos que concorre
para a decadência da cozinha tradicional do país.
Liebling extrai de suas agruras
de universitário famélico um sentido formativo: "Um homem que
seja rico na adolescência está quase condenado a ser um diletante à
mesa. Isso não é porque todos os
milionários sejam idiotas, mas
porque não são impelidos a experimentar. À semelhança da psicanálise, no processo de aprender a
comer, o cliente, para lucrar, tem
que ser sensível ao custo".
Mais do que um gastrônomo ou
"gourmet" afetado, ele é um comensal fascinado pela simplicidade metamorfoseada em tradição,
cujo emblema é o "pot au feu"
-o caldo francês que galgou do
fogão campestre para a panela
dos grandes chefes. "É a cozinha
burguesa em sua melhor expressão, ou a cozinha camponesa elevada a seu ponto mais alto possível", segundo a frase de Waverly
Root.
Liebling constrói teorias mirabolantes para o fim dessa era de
opulência, minada por uma obsessão com saúde e peso que nos é
familiar. "Antes da Primeira
Guerra, os médicos da França tinham sido uma estirpe submissa
e bem-educada, que reconhecia
que seu papel era facilitar a gulodice, e não desencorajá-la. Eles
voltaram à vida civil cheios de um
novo sentido de autoridade, adquirido com o hábito da amputação. E, em vez de continuarem,
como no passado, a aliviar a indigestão, a assediar a dispepsia e a
remediar os ataques de gota, propuseram a amputação de três ou
quatro pratos dos repastos habituais de seus pacientes."
Diante desse quadro melancólico, sobram as pantagruélicas descrições de "alcachofras num pedestal de foie gras", cotovias e guisados de javali -que, como diria
Luis Fernando Verissimo, fazem
com que uma lágrima de emoção
escorra do canto dos lábios.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Fome de Paris
Autor: A. J. Liebling
Tradução: Alice Xavier
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 39,90 (192 págs.)
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