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Crítica/erudito
Jaroussky recria as ousadias de um "castrato" barroco
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Está aí algo que nenhum
de nós jamais ouviu:
uma voz de menino
num tórax de adulto. Tecnicamente, um "castrato" -e o último castrado verdadeiro deixou
de cantar (no Coro da Capela
Sistina) em 1913. Os "castrati"
foram as maiores estrelas da
música nos séculos 17 e 18; entre eles Carestini, cuja vida e
obra ressurgem agora, glamourosa e virtuosisticamente, no
novo disco do contratenor Philipe Jaroussky.
Virtuosismo e glamour não
faltam ao próprio Jaroussky,
que aos 29 anos já virou referência no circuito da música
antiga. Ainda adolescente, ele
aparecia no filme "Farinelli"
(1994), que dramatiza a história do maior rival de Carestini.
De lá para cá, gravou meia dúzia de CDs, cantou em produções importantes de ópera e fez
um legendário primeiro recital
solo em Paris, em março de
2006, cantando essas peças do
repertório de Carestini.
Giovanni Carestini nasceu
em 1700. Com 13 anos, já conhecido por seu talento vocal,
foi acolhido por um cardeal milanês. Logo faria sua estréia em
vários teatros da Itália, onde vigorava a proibição papal contra
a presença de mulheres na cena. Uma década depois, era disputado por compositores da
Europa inteira. "Quem ainda
não ouviu Carestini não sabe o
que é a perfeição do canto", escreveu o compositor Hasse.
Foi para Carestini que Handel (1685-1759) escreveu o papel principal de sua ópera
"Ariodante". Ela inclui a antológica ária "Scherza, Infida",
que concentra muitos ingredientes da arte do "castrato",
recriados com brilho próprio
por Jaroussky: pureza de agudos e virtuosismo ornamental,
somados a uma ousadia que ultrapassa a técnica e colore tudo
de ambigüidades sexuais.
Handel e Gluck (1714-87)
-de quem Jaroussky interpreta uma ária de tormento amoroso-marítimo- são os dois
grandes compositores do disco.
Os outros são Porpora, Capelli,
Leo, Hasse e Graun, nomes de
destaque há 300 anos, hoje
uma esquadra de espectros.
São representantes de um estilo, ao contrário das outras duas
exceções eternas.
Para evitar mal-entendidos,
vale ressaltar que Jaroussky é
um contratenor, não um "castrato". Na linguagem da época,
é um "falsetista"; quer dizer,
canta no falsete, com força
igual à das outras cordas vocais.
Nesse disco, Jaroussky vem
muito bem acompanhado pelos
parceiros do concerto parisiense, a orquestra de câmara Le
Concert d'Astrée, regida por
Emmanuelle Haïm.
A combinação de virtuosismo técnico e dramaturgia erótica, encarnada na elegância
discreta de um artista como Jaroussky (e sua sedutora maestrina), parece simbólica de alguma coisa sem nome, que tanto marcou o século 18 como
marca, de outro modo, o nosso
tempo. A um passo do kitsch,
ou do perverso, controladamente no fio de uma navalha
musical e sexual, a voz do contratenor brilha hoje de novo sobre o céu das cidades, jogando
suas influências sobre a pequena vida e a pequena morte de
cada um de nós.
CARESTINI - THE STORY OF A
CASTRATO
Artista: Philipe Jaroussky
Gravadora: Virgin Classics
Quanto: US$ 14,97 (R$ 26,60, mais taxas, em www.amazon.com)
Avaliação: ótimo
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