São Paulo, segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/erudito

Jaroussky recria as ousadias de um "castrato" barroco

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Está aí algo que nenhum de nós jamais ouviu: uma voz de menino num tórax de adulto. Tecnicamente, um "castrato" -e o último castrado verdadeiro deixou de cantar (no Coro da Capela Sistina) em 1913. Os "castrati" foram as maiores estrelas da música nos séculos 17 e 18; entre eles Carestini, cuja vida e obra ressurgem agora, glamourosa e virtuosisticamente, no novo disco do contratenor Philipe Jaroussky.
Virtuosismo e glamour não faltam ao próprio Jaroussky, que aos 29 anos já virou referência no circuito da música antiga. Ainda adolescente, ele aparecia no filme "Farinelli" (1994), que dramatiza a história do maior rival de Carestini.
De lá para cá, gravou meia dúzia de CDs, cantou em produções importantes de ópera e fez um legendário primeiro recital solo em Paris, em março de 2006, cantando essas peças do repertório de Carestini.
Giovanni Carestini nasceu em 1700. Com 13 anos, já conhecido por seu talento vocal, foi acolhido por um cardeal milanês. Logo faria sua estréia em vários teatros da Itália, onde vigorava a proibição papal contra a presença de mulheres na cena. Uma década depois, era disputado por compositores da Europa inteira. "Quem ainda não ouviu Carestini não sabe o que é a perfeição do canto", escreveu o compositor Hasse.
Foi para Carestini que Handel (1685-1759) escreveu o papel principal de sua ópera "Ariodante". Ela inclui a antológica ária "Scherza, Infida", que concentra muitos ingredientes da arte do "castrato", recriados com brilho próprio por Jaroussky: pureza de agudos e virtuosismo ornamental, somados a uma ousadia que ultrapassa a técnica e colore tudo de ambigüidades sexuais. Handel e Gluck (1714-87) -de quem Jaroussky interpreta uma ária de tormento amoroso-marítimo- são os dois grandes compositores do disco.
Os outros são Porpora, Capelli, Leo, Hasse e Graun, nomes de destaque há 300 anos, hoje uma esquadra de espectros. São representantes de um estilo, ao contrário das outras duas exceções eternas.
Para evitar mal-entendidos, vale ressaltar que Jaroussky é um contratenor, não um "castrato". Na linguagem da época, é um "falsetista"; quer dizer, canta no falsete, com força igual à das outras cordas vocais. Nesse disco, Jaroussky vem muito bem acompanhado pelos parceiros do concerto parisiense, a orquestra de câmara Le Concert d'Astrée, regida por Emmanuelle Haïm.
A combinação de virtuosismo técnico e dramaturgia erótica, encarnada na elegância discreta de um artista como Jaroussky (e sua sedutora maestrina), parece simbólica de alguma coisa sem nome, que tanto marcou o século 18 como marca, de outro modo, o nosso tempo. A um passo do kitsch, ou do perverso, controladamente no fio de uma navalha musical e sexual, a voz do contratenor brilha hoje de novo sobre o céu das cidades, jogando suas influências sobre a pequena vida e a pequena morte de cada um de nós.


CARESTINI - THE STORY OF A CASTRATO
Artista:
Philipe Jaroussky
Gravadora: Virgin Classics
Quanto: US$ 14,97 (R$ 26,60, mais taxas, em www.amazon.com)
Avaliação: ótimo


Texto Anterior: Crítica/música/"Frevo do Mundo": Uso de elementos contemporâneos mostra que gênero não se esgotou
Próximo Texto: Sucesso infantil estréia hoje na Cultura
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.