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João Pereira Coutinho

Diário de Londres

Hitchens tinha a qualidade rara de juntar inteligência, elegância, gosto pela polêmica e humor

1. Christopher Hitchens (1949-2011) esteve em Lisboa dois anos atrás para uma palestra na Casa Fernando Pessoa. Um amigo que trabalha na instituição lançou-me o desafio: viajar com Hitchens até Évora e escrever a respeito.

Infelizmente, compromissos acadêmicos impediram-me de fazer a entrevista-reportagem nessa cidade alentejana que lhe deixara gratas memórias do tempo da Revolução dos Cravos (1974). "Fica para uma próxima", disse eu.

Não haverá próxima: chego a Londres, e as notícias estão por todo lado. Hitchens morreu.

A doença grave do colunista, um câncer no esôfago, não era surpresa para ninguém: o próprio, em textos magistrais para a "Vanity Fair", foi desenhando essa cartografia da morte. Mas toda gente está surpresa na mesma.

Hitchens tinha aquela qualidade "bigger than life" que não se ajusta à mera mortalidade humana. Uma qualidade que foi crescendo na medida dos seus objetos de desafeto: a princesa Diana; madre Teresa de Calcutá; Henry Kissinger; o encantador casal Clinton. Era inevitável que Deus fosse o último da fila.

Na hora da morte, os comentários batem todos no mesmo ponto: apesar de não se concordar com tudo, Hitchens vai fazer falta.

Eu, pelo contrário, concordava com tudo, mesmo quando não concordava com nada. Hitchens, que Gore Vidal designou como seu herdeiro (para se arrepender depois, com o apoio de Hitchens à Guerra do Iraque), tinha a qualidade raríssima em qualquer colunista de juntar inteligência, elegância estilística, gosto pela polêmica e humor.

No mundo anglo-saxônico, conheço poucos: Vidal, sim; H.L. Mencken (1880-1956), certamente; Auberon Waugh (1939-2001), sem dúvida alguma. Mas Mencken e Waugh estão mortos; Vidal, quase.

Livros? Em todas as livrarias está a sua última coleção de jornalismo, "Arguably", onde encontramos o Hitchens refinado dos ensaios "literários" sobre Evelyn Waugh (1903-66), P.G. Wodehouse (1881-1975) e, em parricídio freudiano, Vidal.

Mas, olhando para a obra completa, o meu Hitchens preferido continua a ser um pequeno tratado sobre George Orwell ("A Vitória de Orwell"). Não necessariamente por oferecer grandes revelações sobre o escritor; mas porque é a autobiografia intelectual de Hitchens, bastante superior à autobiografia propriamente dita.

Hitchens encontrou em Orwell as qualidades que admirava e praticava: bravura moral e insubmissão a qualquer poder autoritário.

Uma combinação que, repito, transcende as divisões clássicas entre esquerda e direita, recentrando o debate na única questão que interessa: a defesa da liberdade individual face aos seus inimigos.

Um brinde a ele -com Johnnie Walker (o Black Label, claro).

2. Se o leitor vier a Londres até o dia 14 de janeiro, esqueça os musicais do West End, que apenas dão mau nome a essa arte moribunda. E, francamente, valerá a pena assistir a Vanessa Redgrave e James Earl Jones em "Driving Miss Daisy"?

Melhor festejar 2012 como ele merece ser festejado: lembrando que Charles Dickens (1812-1870) nasceu há 200 anos. O impagável Simon Callow lembrou e apresenta "A Christmas Carol" no Arts Theatre.

Quando digo "apresenta", deveria ter escrito "lê", embora Callow não leia propriamente: recita.

Sozinho no palco, o ator que ficou conhecido como o gay excêntrico de "Quatro Casamentos e um Funeral" regressa às origens -no duplo sentido: primeiro, porque retoma literalmente as palavras de Dickens; e, depois, porque o próprio Dickens tinha por hábito fazer essas "leituras públicas" onde costumava encarnar cada uma das suas personagens.

O resultado é deslumbrante. E, se o leitor não sentir o coração ruir com a ressurreição laica de Scrooge, visitado por três espíritos de Natal que o despertam da sua modorra misantropa, o melhor é arrancá-lo já do peito e legá-lo à ciência -ou, melhor, ao açougue.

3. Noite. Frio em Picadilly -zero grau? Menos? Pelo espetáculo que passa à minha frente, mais, seguramente mais: são dezenas de inglesas semidespidas que caminham pela rua como se fosse verão (brasileiro). Como explicar o fenômeno que há vários anos intriga os antropólogos friorentos?

"Simples: elas não estão despidas", diz-me uma voz amiga, que entende do assunto. "Você nunca ouviu falar do 'beer coat'?"

Vive e aprende, João.

jpcoutinho@folha.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Marcelo Coelho

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