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Crítica poesia

Poemas de Nuno Ramos mostram que ainda é possível causar estranhamento

Não parece interessado na poesia como exercício de autossatisfação lírica, diário escolar com sacadas espirituosas

REYNALDO DAMAZIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O conjunto de textos de Nuno Ramos reunidos no livro "Junco" demonstra que ainda é possível causar estranhamento, desconforto e perplexidade com o poema.

O paralelismo gráfico entre as imagens de troncos de madeira abandonados na praia e os corpos de cães mortos na rua ou na beira da estrada compõe um diálogo perturbador com os poemas, apontando para uma perspectiva de nítido desencantamento com a realidade (praia) "formada por palavras/ montes de palavras/ dejetos de palavras/ mascadas, cuspidas".

Trafegando no contra fluxo da moda na literatura brasileira recente -como também ocorre no excelente "O Metro Nenhum", de Chico Alvim-, Nuno Ramos não parece interessado na poesia como exercício de autossatisfação lírica, espécie de diário escolar com sacadas espirituosas e colagens de metáforas requentadas, que banalizam a prosódia.

"Eu não escrevo. Vivo/ como um urubu de feltro/ imóvel entre a carniça/ dura desses carros./ Bato nos vidros", anota Ramos sobre a impiedosa errância do indivíduo comum na cena urbana (o que nos remete à polêmica instalação do artista na 29ª Bienal de São Paulo, quando expôs urubus de verdade no espaço fechado da mostra)

A figuração do abandono, expressa tanto nos restos de madeira na areia como nos corpos dos animais sobre o asfalto, aponta também para a dispersão das palavras na antiutopia do poema, como escolhos de uma experiência que se apaga com as ondas, ou que se acumula como algas ao acaso das marés, escavando no pântano da vertigem os "troncos sólidos e cachorros mortos".

Essa palavra incerta, errante, não resolve o desconcerto do mundo, a solidão do poeta, a degradação, o hiato entre os sentidos e a representação. Caberia talvez ao poema tocar "o mole/ informe, sujo/ modo de vida breve".

Mesmo a correspondência óbvia, palpável, entre o registro da morte e a impotência do poeta como sujeito que vê a tragédia já como ato consumado -ao mesmo tempo alheio e tocado por ela- vai se desmembrando na fragmentação própria dos versos e no caráter serial da antologia, que incorpora e amplia a difusa percepção da realidade, em sua tessitura opaca, mas sólida: "Para mim a praia/ não o que há na praia mas o/ buraco-praia, o intervalo-/ sal, o que vai no meio/ do grão".

Num dos textos mais longos do livro, Nuno Ramos se apropria de versos de "A Máquina do Mundo", de Carlos Drummond de Andrade, para abrir uma fenda no "dia próprio/ pessoal, intransferível" e levar o leitor aos labirintos da memória, ou da construção de uma trajetória pessoal, entre "dente e olho/ foz e química/ poça e lume/ pus e trigo".

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JUNCO

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