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Crítica Romance

Narrador ingênuo é o trunfo de novela sobre narcotráfico

"Festa no Covil" mostra vida de barão das drogas pelos olhos de seu filho

Alessandro Shinoda/Folhapress
Juan Pablo Villalobos na casa onde vive, em Campinas (SP)
Juan Pablo Villalobos na casa onde vive, em Campinas (SP)

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Festa no Covil", novela de estreia do mexicano Juan Pablo Villalobos, 38, tem como grande trunfo a lógica ingênua de seu narrador: um menino inteligente, de idade indefinida, filho de um chefão do narcotráfico, que fornece uma visão íntima de sua vida no "palácio" do pai.

Para um brasileiro cultivado é fácil perceber a graça do livro: basta imaginar uma personagem como a Lori Lamby, de Hilda Hilst, disposta a explicar não as vicissitudes do sexo, mas a vida doméstica dos criminosos.

Ainda que Villalobos não tenha a mesma radicalidade transgressora de Hilst, a analogia é ainda mais própria porque "Festa no Covil", como "O Caderno Rosa de Lori Lamby", também trata de confrontar aquilo que é moralmente condenável, mas não percebido como tal pela criança, com o sentido de se fazer literatura no presente sem que se torne um exercício de banalidade escapista.

Desse ponto de vista, é difícil compreender porque a edição brasileira vem acompanhada do posfácio de um autor britânico que se esforça para dar uma ideia do livro para leitores familiarizados com... literatura de língua inglesa.

Também não se compreende a escolha do termo "covil" para traduzir o espanhol "madriguera".

A conotação negativa da palavra portuguesa rompe o que é mais precioso no livro: a simulação da inocência infantil para descrever sem horror o horror que deveras existe no interior caótico do mundo em que vive.

Melhor seria "esconderijo", pois, além de mais literal, reforça o sentido lúdico da descrição, ou "toca", pois, às vezes, o menino se imagina como parte de um bando de coelhos.

EXTRAVAGÂNCIAS

Não é a sua única extravagância eficaz para suportar a dor de barriga "psicológica", diagnosticada pelo médico que o vem visitar.

O menino também gosta de decifrar enigmas, colecionar chapéus, deseja um hipopótamo anão da Libéria para ter no quintal ao lado dos tigres e do leão -que servem não apenas como decoração exótica, típica da "narquitetura" das mansões, mas para fazer desaparecer os cadáveres que surgem por ali.

SÓRDIDO E FULMINANTE

O menino também gosta de ler dicionário antes de se deitar. É assim que pode organizar o seu juízo do mundo com base em "palavras difíceis" como "sórdido, nefasto, pulcro, patético e fulminante".

Com esse léxico "culto", ele organiza retoricamente a violência que testemunha, o que produz, ademais, um efeito irônico-bizarro de "overidentification" -isto é, de superidentificação com o mal.

Mas ele também transita pelas figuras dos surdos e mudos (como os criados da sua casa), dos coelhos (que saem das cartolas, vivem em bandos e se escondem nas tocas), dos samurais (especialistas em decepar corpos e em matar os amigos em nome da honra) e dos franceses (adeptos da guilhotina).

A taxonomia infantil, que distorce à sua maneira o real monstruoso, se amplifica em identidades provisórias nas quais ecoam o ridículo e o banal, o estereótipo e a dissonância, o perigo e o tédio -pares mínimos do "estilo narco" de viver.

Por todas essas razões, ao contrário do que diz o posfácio para inglês ler, "Festa no Covil" é, sim, uma contrafação absurda da narrativa brutalista da chamada "narcoliteratura", assim como "O Caderno Rosa de Lori Lamby" é uma contrafação da literatura pornô.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp

FESTA NO COVIL

AUTOR Juan Pablo Villalobos
EDITORA Companhia das Letras
TRADUTORA Andreia Moroni
QUANTO R$ 29,50 (96 págs.)
AVALIAÇÃO bom

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