Índice geral Ilustrada
Ilustrada
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Crítica história

Livros sobre d. Pedro 1º têm resultados distintos

Mary Del Priore tece relato saboroso sobre o 1º Reinado ancorado em bibliografia, enquanto Javier Moro dispensa pesquisa

A escrita da história só vale se feita por historiadores profissionais? Claro que não. Antes de tudo porque os próprios cursos de história são recentes, datam do século 20

RONALDO VAINFAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Está na ordem do dia a polêmica sobre os livros de história escritos por autores sem formação específica.

Por vezes o debate também envolve os historiadores de ofício que, abrindo mão dos clichês acadêmicos, constroem narrativas acessíveis aos leitores comuns. Tais livros vêm alcançando, como se sabe, grande êxito editorial, tornando-se best-sellers.

A posição do mundo acadêmico em relação a esses livros é conhecida. Predomina uma atitude de rejeição, alegando-se sobretudo o amadorismo de boa parte desses autores. Na crítica mais miúda, são apontados erros factuais, por vezes grosseiros, anacronismos de todo tipo e ausência de reflexão teórica.

A crítica procede, até certo ponto, quando aponta os deslizes factuais e os anacronismos -fórmula fácil para presentificar o passado, em prejuízo da história.

Em todo caso, vale a pergunta: a escrita da história só vale se feita por historiadores profissionais? Claro que não. Antes de tudo porque os próprios cursos de história são recentes, datam do século 20.

Leopold von Ranke, por exemplo, fundador do historicismo alemão no século 19, cursou literatura clássica e teologia na Universidade de Leipzig. Alguém ousaria dizer que Ranke não era historiador? E quanto ao monumental Sérgio Buarque de Holanda, formado em direito por volta de 1925?

Na bibliografia recente, vários autores sem a tal formação dão contribuição excelente ao conhecimento histórico. Evaldo Cabral de Mello e Alberto da Costa e Silva, por exemplo: diplomatas de carreira, historiadores por vocação. Elio Gaspari, jornalista, outro exemplo, com sua obra sobre a ditadura, ancorada em fontes inéditas.

O que mais qualifica um livro de história enquanto tal é a erudição do autor, sua acuidade analítica, a base documental de sua obra e seu talento literário.

Tais requisitos, queira-se ou não, independem de uma formação específica.

MIXÓRDIAS

Vale, porém, distinguir os livros de história credíveis, ainda que escritos por profissionais de outras áreas, de certos livros ligeiros, sem originalidade nem pesquisa documental.

Alguns vampirizam a produção acadêmica ou livros clássicos, produzindo mixórdias voltadas ao grande público. Se o público leitor gosta desses livros, paciência.

Os livros de Javier Moro e de Mary Del Priore sobre dom Pedro 1º têm a ver com essa discussão. O espanhol Moro é um escritor premiado, com livros traduzidos para diversos idiomas.

Seu talento literário é inegável. Mas como definir "O Império É Você"? Respondo: é um romance histórico, não um livro de história. O autor não se escusa de inventar diálogos que nunca ocorreram, intuir sentimentos, presumir fatos. Pesquisa documental? Nenhuma. Nota-se, porém, que o escritor leu diversas obras sobre o imperador e sua época. Salvam-se, assim, a reconstrução do ambiente e a qualidade literária.

Mary Del Priore também é escritora cujo talento não se discute. Em "A Carne e o Sangue", conta a história do Primeiro Reinado a partir de um enredo novelesco: o triângulo amoroso envolvendo dom Pedro 1º, a imperatriz Leopoldina e a marquesa de Santos.

Trata-se de um romance? Sim e não. Sim porque o livro pode ser lido como uma boa novela. Não porque a autora, historiadora de ofício, consegue resgatar o passado enquanto passado, sem cair nos clichês academicistas.

Dá contribuição valiosa para a historiografia, apoiada em vasta bibliografia e num tremendo arsenal de fontes impressas e manuscritas.

Mary del Priore é uma heroína da nossa historiografia, porque se despojou do palavreado teoricista, chatíssimo, para produzir livros de valor e com sabor.

Eis a diferença entre os dois livros. Neste caso, a formação de cada autor pesa no resultado. Mas ambos são livros bem-vindos.

Estão longe dos livretes aventureiros que destratam, com inegável sucesso, a coitada da história.

RONALDO VAINFAS é professor de história moderna da Universidade Federal Fluminense e autor de "Antônio Vieira" (Companhia das Letras).

A CARNE E O SANGUE
AUTORA Mary Del Priore
EDITORA Rocco
QUANTO R$ 34,50 (272 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

O IMPÉRIO É VOCÊ
AUTOR Javier Moro
EDITORA Planeta
TRADUÇÃO Clene Salles
QUANTO R$ 49,90 (496 págs.)
AVALIAÇÃO regular

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.