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Crítica romance

Vencedor do Goncourt cria escrupuloso narrador para atentado contra nazista

O autor prefere falhar como romancista a ter êxito com uma história que não corresponda aos fatos

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Laurent Binet venceu o Prêmio Goncourt para estreantes com "HHhH", abreviatura da expressão alemã Himmlers Hirn heiBt Heydrich [o cérebro de Himmler se chama Heydrich].

O título é engenhoso, pois alude às duas questões que estruturam o romance.

De um lado, o relato dos acontecimentos que culminaram no atentado cometido em Praga contra Reinhard Heydrich, o sanguinário comandante nazista da então Tchecoslováquia, anexada pelo Reich em 1939.

De outro, a manifestação da dificuldade de contá-lo -esse vazio preenchido por agás- sem incorrer em ficção, reduzindo a mero romanesco a experiência histórica ali ocorrida.

Binet professa desdém pela literatura e horror pelo gênero do romance histórico.

Quer contar o caso sem fantasiá-lo, sem lançar mão de dados que não conhece ou para os quais não dispõe de documentação -embora, em geral, seja pouco crítico em relação à documentação que usa.

Sobretudo, não pretende inventar personagens ou situações com o intuito de tornar mais verossímil o relato.

Apresenta-se, portanto, como um narrador escrupuloso, que prefere fracassar como romancista do que ter êxito com uma história que não corresponda aos fatos.

Considera desprezíveis os recursos do romance realista para produzir "efeito de real", o que basicamente implica as convenções usadas para obter verossimilhança.

A crer na sinceridade desses escrúpulos, a primeira questão que ocorre lançar a Binet é naturalmente saber por que ele não abdica do gênero do romance e se dedica à pesquisa histórica, como propõe o crítico James Wood, em resenha do livro para a revista "New Yorker".

No entanto, para entender por que não é essa a escolha de Binet, é preciso considerar uma terceira questão estrutural no livro: não se trata só de se manter fiel aos fatos e evitar a ficção, mas de fazer com que os fatos se invistam da pessoalidade do narrador.

Binet não tem nada a ver com um historiador tradicional a investigar os fatos objetivamente: quer os fatos tais como sua própria vida pode compreendê-los como memória, isto é, desde quando seu pai lhe falou do atentado pela primeira vez, ainda menino, até quando diferentes namoradas acompanharam-no aos locais do atentado, nos quais os buracos de bala nos edifícios ainda se deixam ver -e cultuar.

Portanto Binet não é um neopositivista em luta contra as trapaças do romance realista, como mais ou menos pensa ser: é um presentista, alguém que pensa o passado não como uma ocorrência dotada de factualidade em si mesma, mas como internalização subjetiva no presente.

O curioso é que, postos lado a lado, os eventos e os escrúpulos, o que resulta é... um romance de aventuras. A editora não mente, apenas exagera, quando o chama de "eletrizante".

Há uma enorme ironia em tudo isso: na recusa do realismo em favor do real, Binet não encontra um modo de interrogar a ocorrência da barbárie, mas tão só de injetar adrenalina na sua assimilação. Isso não vai dar filme: já é filme, e você já o assistiu.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Unicamp e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).

HHHH
AUTOR Laurent Binet
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Paulo Neves
QUANTO R$ 51 (344 págs.)
AVALIAÇÃO regular

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