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Carlos Heitor Cony

Autossustentável

Adquiri a paixão de assistir no Arpoador às corridas noturnas de submarinos, que entravam em moda

Foi a primeira vez em que ouvi a expressão. Faz tempo, a moeda ainda era o cruzeiro e eu estava avaliando o carro que pretendia comprar. Até então, comprava os de segunda mão, americanos, já testados. O Simca Chambord era nacional, o mais bonito dos carros fabricados aqui.

O Millôr Fernandes tinha um, ele havia me dito que o desenho era o mais sofisticado, em compensação, tinha pouca potência, só o usava para ir de Ipanema até ao "Correio da Manhã", onde mantinha uma coluna, sem necessidade de ladeiras que forçassem o motor.

Aliás, os cariocas haviam lhe dado o apelido de "Belo Antônio", referência a um filme de Mauro Bolognini que fazia sucesso, com Marcello Mastroianni despertando paixões no mulherio pela sua bela aparência, mas brochando na hora das horas. Além disso, era de manutenção cara e bebia muita gasolina.

Expus minhas dúvidas ao vendedor, que era sogro do Flávio Rubens, filho do Ary Barroso, que me indicara aquela loja. Perguntei se a manutenção era cara, se havia peças sobressalentes no mercado, se consumia muito com seus oito cilindros em linha.

- Pode levar -respondeu o vendedor. E acrescentou: - É um carro sustentável. Um auto verdadeiramente sustentável.

Achei o comentário pernóstico, a palavra ainda não estava na moda, ficava longe do atual e excessivo uso na publicidade, na mídia e nos debates culturais, só era usada para designar uma mulher sustentada por amante casado com outra, um coronel, enfim.

Anos depois, ouvi do Israel Klabin, ex-prefeito do Rio e empresário de sucesso, um dos pioneiros da sustentabilidade econômica e ecológica, a mesma palavra. Ele mantinha em São Conrado, zona sul da cidade, um belo escritório dedicado a projetos e coisas sustentáveis. Não fiz muitas perguntas sobre o que era aquilo, fingi que entendi e aprovei.

Volto ao "Belo Antônio", que além de bonito era amplo, confortável, adequado a uma paixão que adquiri na época: a de assistir no Arpoador às emocionantes corridas noturnas de submarinos, esporte que entrara em moda porque a polícia resolvera dificultar o uso dos hotéis de alta rotatividade, exigindo a apresentação da identidade dos dois interessados.

Os jornais diziam que a rede era explorada por um tal de "Lima dos Hotéis", de nacionalidade espanhola ou paraguaia, não me lembro. O "Lima" mais em evidência naquela ocasião era o Negrão de Lima, que foi prefeito e depois governador do Rio, mineiro de várias gerações.

O fato é que os ditos hotéis foram liberados e prosperaram ao longo dos 18 quilômetros de praia e outros tantos quilômetros de ruas adjacentes que formavam a ainda deserta Barra da Tijuca.

O "Belo Antônio" não precisava mais ficar horas no Arpoador, com seus ocupantes torcendo e se torcendo pelos submarinos noturnos.

Na entressafra entre dois casamentos, passei a frequentar os estabelecimentos do Lima dos Hotéis, até que, num deles, o carro me deixou literalmente na mão. Quase ficava ao nível da praia, era preciso descer uma ladeira curta mas íngreme -como convém literariamente às ladeiras.

Cumprido o dever, paga a conta do quarto acrescida de algumas cubas livres, sem espaço para tomar impulso, obriguei o carro a enfrentar a íngreme ladeira. Não deu jeito. Apesar de seus oito cilindros em linha e de sua sustentabilidade, o "Belo Antônio" se recusava a subir, tal como Marcelo Mastroianni no filme.

O gerente do hotel chamou o reboque, foi um vexame. Havia uma agravante naquilo tudo: a mulher era casada, precisava chegar em casa antes do marido que era qualquer coisa importante no Instituto Nacional do Café. Chamava-se Antunes.

O resultado foi que perdi a mulher, nunca mais a tive, nem mesmo quando troquei o "Belo Antônio" com a sua sustentabilidade por um Jaguar de segunda ou terceira mão, preto, sinistro, que eu apelidei de "Nosferatu", em homenagem ao filme de Murnau, potente como um índio das Canárias.

Além de ser também sustentável, sustentou a concupiscência do seu comprador até que a entressafra conjugal acabou. Apesar de tudo, o dono sofre uma insustentável saudade do "Belo Antônio" toda vez que passa pelo Arpoador. Ou quando adentra pelos 18 quilômetros de praia e outros tantos de ruas que formam a Barra da Tijuca.

AMANHÃ NA ILUSTRADA: Drauzio Varella

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