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Marcelo Coelho

Ladrão de casaca

Não se está mais no terreno da arte dedutiva. O gênio de Lupin não está só em descobrir, mas em enganar

Não sei se o xadrez é uma arte, mas sei que certamente ninguém incluiria a corretagem de imóveis ou a barbearia no ramo da estética.

Só que existem clássicos, românticos e modernos em todos os campos -não só na poesia, na música ou na pintura. Quando eu era pequeno (e isso foi antes mesmo de Bobby Fischer ter surgido), quis aprender as regras do xadrez.

Um pouco por ser pretensioso e também por gostar de livros, logo comprei um volume de capa amarela, que trazia os melhores jogos de um campeão russo da época.

Tudo era incompreensível, naturalmente, para um iniciante como eu. A única coisa de que me lembro era que Boris Spassky (esse o nome do mestre) parecia estar sempre jogando com as brancas, e o tempo todo derrotava seu rival, Tigran Petrossian, que, como o nome indica, jogava com as pretas.

Instintivamente eu torcia por Petrossian. Na minha imaginação ele seria mais interessante e felino do que Spassky, que pelo nome só podia ser um tipo pasteurizado, lácteo e plano. Havia também V.V. Smyslov; como todo bom russo daquela época, seu primeiro nome tinha só iniciais.

Não faço ideia da genialidade real de cada um. Mas, sem dúvida, os dois campeões correspondiam a algum tipo de xadrez bem soviético, isto é, tecnocrático e rígido.

Foi quando apareceu outro livrinho, mais fácil. Reproduziam-se ali partidas bem antigas, dos primeiros gênios do xadrez. Já seus nomes tinham sonoridades radiosas, triunfais. Penso em Philidor, que era músico, e no grande cubano Capablanca. No tabuleiro, eu reproduzia seus lances.

Tudo era claro e, ao mesmo tempo, surpreendente. Jogadas de ousadia quase suicida se resolviam com o adversário tonto, derrubado, estatelado no chão. Parecia ser possível acompanhar até os gestos de pulso de Capablanca, como se aquilo tudo fosse uma esgrima de torres e cavalos.

O que era aquilo? Era o romantismo -em pleno e cerrado campo de xadrez. Lendo agora sobre o assunto, vi que existiu até uma escola

"hipermodernista" no jogo, evidentemente ameaçado hoje por outra arte, com seus outros gênios -a de construir programas de computador.

Mas quero falar de outra coisa, e fazer uma pequena correção. Elogiei, em outro artigo, a nova série de Sherlock Holmes feita pela BBC, cuja primeira temporada já está disponível em DVD.

Puramente cerebral, Holmes foi um dos heróis da minha infância medrosa e sedentária. Mas cometi uma injustiça com outra estrela dos romances policiais antigos.

Era Arsène Lupin, o "ladrão de casaca". Criado por Maurice Leblanc (1864-1941), funcionava claramente como contraparte francesa -e, portanto, galante, bem-humorada, imaginativa- ao austero empirismo do detetive inglês.

A boa notícia é que reaparece no Brasil o primeiro livro da série de Arsène Lupin, em edição de bolso da L&PM. A tradução mais antiga, de Paulo Hecker Filho (editora Record), me pareceu melhor que a atual, de Paulo Neves, mas...

(Essas reticências são típicas de Maurice Leblanc). Mas os contos de "Ladrão de Casaca" são tão rápidos e fulgurantes que não temos tempo de reparar em traduções.

É verdade que a primeira história do livro, mostrando o famoso ladrão num navio transatlântico, recorre a um imperdoável golpe baixo para assegurar a surpresa do desfecho.

Não faz mal. Arsène Lupin, cujos feitos são endeusados pelo narrador, a léguas de distância do sensato dr. Watson, não veio ao mundo apenas para desvendar mistérios.

Tem prazer em criá-los. Anuncia com semanas de antecedência a data e a hora dos seus furtos -que vitimam barões e ricaços, de modo que ninguém sai arruinado de cada expedição. Mais ainda: Lupin está preso, sob vigilância máxima. Diz quando e como fugirá da cadeia, e convida o chefe da polícia para um aperitivo no dia marcado.

Devolve as joias que roubou. Não as devolve. Será que devolveu? Entrega-se à polícia; engana-a novamente. É o romantismo policial, como era romântico o xadrez de Capablanca.

Não se está mais no terreno da arte dedutiva. O gênio de Lupin não está só em descobrir, mas em enganar. Não desfaço meus elogios a Sherlock Holmes; mas o uso, na literatura policial, da psicologia da crença e da ilusão, com o ladrão-detetive de Maurice Leblanc, dava um novo passo -elegante e gracioso, em sapatos de verniz.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris

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