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Em defesa da sociedade

RENATO SÉRGIO DE LIMA

A forma como governos e forças policiais reagiram à onda de manifestações sociais, com mais de 1 milhão de pessoas protestando nas ruas do país, é evidência cabal não só da falência do atual modelo de segurança pública brasileiro mas, infelizmente e de modo preocupante, da fragilidade das instituições democráticas no Brasil.

As polícias brasileiras, à semelhança do que ocorre na Turquia e em outras partes do mundo, estão estruturadas a partir da lógica de defesa dos interesses do Estado e não sabem lidar com a defesa dos interesses da sociedade, ainda mais quando diferentes direitos são contrapostos e elas são chamadas para administrar conflitos.

O país foi tomado por um forte sentimento difuso de insatisfação e, em não existindo uma doutrina nacional de uso da força que balize governos e polícias sobre como atuar para geri-lo, não há certeza sobre como e quando devem agir.

E isso é ainda mais grave quando as manifestações começam a dar pistas de que esta insatisfação difusa vem associada ao crescimento do desprezo pela política e pelas instituições, como na repulsa a governos e partidos, ou ao desrespeito às diferenças.

Os governos ficaram atônitos, e o efeito é que há um desproporcional (para mais e para menos) emprego dos recursos de força hoje disponíveis, que paradoxalmente foram modernizados por pesados investimentos em tecnologia e gestão feitos nos últimos 20 anos.

Numa análise jurídica do atual quadro do país, nota-se que segurança pública é um conceito frouxamente formulado e recepcionado na legislação e nas normas que regulam o funcionamento das instituições encarregadas de garantir direitos, ordem e tranquilidade.

Não existe projeto político dos governos para a área, e o debate sobre segurança pública ficou restrito a quem responde melhor aos dramas da opinião pública e investe mais em armas e viaturas. E, em segurança pública, prioridade política não se traduz apenas em mais recursos financeiros.

Slogans são criados e investimentos são feitos, mas sem discutir os ruídos, no pacto federativo, do modelo bipartido de organização policial (civil e militar), do papel desempenhado pelas Polícias Civil, Militar e Federal; pelo Ministério Público; e pelos Três Poderes.

Na incapacidade de definir um protocolo transparente de intervenção, os governos abrem margem para a violência eclodir e fortalecem a tendência de homogeneização do comportamento de organizações de um mesmo campo.

Esta tendência é chamada de isomorfismo, entendido como um processo de constrangimento organizacional que, sob as mesmas condições, força as organizações à assemelharem-se a organizações que reconhecem como referência.

Uma das forças desse isomorfismo é a incerteza. Quando as organizações são pouco transparentes, seus objetivos são ambíguos ou o ambiente social gera incertezas simbólicas, as polícias tendem a incorporar soluções adotadas por essas outras organizações. No caso das PMs, as soluções encontradas ainda estão sob forte identidade das Forças Armadas. Mesmo reconhecendo o esforço, nas últimas décadas, para mudar padrões, por trás das balas de borracha e do tratamento de busca e captura de manifestantes há a ideia de que existe um inimigo.

Isso não é exclusividade das polícias militares. O enquadramento dos manifestantes no crime de "formação de quadrilha" é outro exemplo de que estamos despreparados para administrar conflitos, pois ele repete o tratamento penalizante dispensado ao crime organizado.

Por maior que seja a disposição de segmentos importantes das forças policiais para se adaptarem à ordem democrática, a falta de prioridade política e a força do isomorfismo das organizações impedem que mudanças significativas ocorram sem envolvimento da sociedade.

Ou radicalizamos na transformação das instituições responsáveis por prover segurança pública ou continuaremos reféns das crises e das eclosões de violência. A violência e a insatisfação que surgem das manifestações e da forma como governos e polícias a ela reagem são sintomas de profundo mal-estar da sociedade com o modelo de organização do Estado. Ou compreendemos esse mal-estar e saímos da zona de conforto do senso comum e do cálculo eleitoral ou corremos riscos de retrocesso institucional. As conquistas sociais são fundamentais, mas não são suficientes para mudar o país.


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