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Tesouras afiadas

Na transição democrática, a censura atuava pela moral e os bons costumes

FERNANDA ODILLA NATUZA NERY

RESUMO Documentos desengavetados pelo Ministério da Justiça trazem detalhes da censura no Brasil durante a transição da ditadura militar para a democracia. Em 1981, o número de censores chegou a 221; a Folha conversou com cinco mulheres que exerceram a função e conta suas cruzadas contra pornografia, drogas e palavrões.

APÓS protagonizar oito dezenas de filmes pornô e de povoar a fantasia de muita gente nos anos 1980, Ginger Lynn, 50, continua loira e na ativa nos EUA. Tem uma conta no Twitter, um site oficial no qual vende sua obra e ainda arrisca "sensualizar" em produções recentes para o nicho mais maduro no mercado de vídeo.

No Brasil, ainda jovem, foi protagonista involuntária de uma façanha: dois dos filmes em que mostra seus dotes foram liberados pela censura, ainda que parcialmente: "Girls on Fire" e "Jailhouse Girls". Ou, honrando a tradicional criatividade para títulos cinematográficos vigente no país, "Quanto mais Dentro, Melhor" e "O Carcereiro Sexomaníaco".

O fato ocorreu em novembro de 1985, e a ditadura militar era defunta havia apenas oito meses. Mas um pequeno batalhão de censores e censoras sobreviveu a seu ocaso, vetando e ordenando remontagens de tudo o que fosse contra os códigos da moral e dos bons costumes.

No caso do díptico de Ginger Lynn, censoras determinaram que seria preciso cortar da versão remontada "tomadas em plano detalhe, closes de sexo explícito, sejam eles homo ou heterossexuais exibidos sob a forma de felação, cunilíngua, sodomia e penetração vaginal". Precisariam ser eliminadas ainda "sequências de ejaculação externa em seios, nádegas, púbis e coxas, triolismo, mordidas em testículos, masturbação feminina e masculina, manipulação ou detalhes de genitálias".

Os cortes nesses filmes foram sugeridos por seis mulheres, que, divididas em trios, assistiram e analisaram em detalhe as cenas picantes. Incrivelmente, sobrou aquilo que todo mundo sabe ser acessório em pornôs: o enredo. A saber, a trama da ninfomaníaca insatisfeita com o marido que aproveita a visita de dois agentes de seguro e a saga de prostitutas presas em flagrante que, rumo à penitenciária, são forçadas a fazer sexo com o policial e, depois, com funcionários e detentas da prisão.

Alguns cortes revelavam o lado família das censoras. A produção franco-brasileira de título auto- explicativo "Casal Procura Casal para Sacanagem a Quatro", por sua vez, foi integralmente interditada por outro trio por ter desvirtuado "o sentido real do casamento" e seu "aspecto sentimental".

Os pareceres dessas nove censoras fazem parte de um lote de documentos, muitos deles inéditos, que o Ministério da Justiça desengavetou e irá remeter ao Arquivo Nacional, em Brasília.

A Folha localizou cinco dessas censoras, hoje aposentadas na casa dos 60 anos, daquelas que dificilmente alguém diria que já assistiu a filmes pornô e até apresentações ao vivo de sexo explícito.

Uma delas é Maria das Graças Pinhati, 65, que diz ter assistido a muita pornochanchada, o popularesco pornô brasileiro que fez fama pela baixa qualidade, cenas de nudez e humor escatológico. "Aprendi a não me chocar com nada. Censor tem que ser imparcial e técnico e se preocupar com as crianças e os adolescentes", afirma, depois de 18 anos trabalhando diretamente com censura.

Ela vetou na íntegra a produção franco-brasileira que narra "experiências sexuais de um jovem casal adepto ao swing" e mostra posições variadas com "destaque à técnica do 69". Fez constar de seu parecer que "as cenas são sempre agravadas pela prática simultânea de várias anomalias sexuais".

GILBERTINHO A delegada aposentada Viviane da Rosa, 58, cai na gargalhada ao ouvir que também deu um parecer pela interdição do filme sobre troca de casais. "Era um inferno, um horror. Tinha que ter o trabalho de ver a fita toda, completa, e ir fornecendo sugestões de cortes", recorda. A cada cena que contrariava a lei, era preciso parar o filme e tomar nota. A lista de cortes era anexada ao parecer. "Tinha que falar para o rapaz que operava a máquina: Gilbertinho, para aí onde ela começa a chupar o pinto'", diz, emendando outra gargalhada.

"A legislação era muito fechada. Não tinha jeito, a pornografia, conjunção carnal onde aparecesse sexo explícito, era proibida. Também tínhamos muita preocupação com as apologias às drogas", explica, dizendo que, sim, os censores eram "defensores da moral e dos bons costumes".

O Brasil já respirava democracia quando Viviane começou a trabalhar como censora, em 1986. Outros tempos, diz ela. Assim, não foram apenas as cenas de dupla penetração, fetichismo, voyeurismo ou ejaculação externa múltipla descritas por ela que motivaram seu parecer contrário à exibição do filme sobre troca de casais --mas principalmente o casamento aberto dos protagonistas do filme.

"Tudo é mostrado em planos de detalhe, fazendo uma apologia, tanto no aspecto visual quanto nos diálogos, de que o casamento é bom para que o casal tenha ampla liberdade para se relacionar com quem quiser, numa desvirtuação total do aspecto sentimental", diz trecho do parecer de Viviane.

O erotismo e a sexualidade, na avaliação de especialistas, só eram totalmente barrados pela censura quando assumiam a forma de denúncia ou de provocação.

"Era mais fácil um filme erótico conservador ser liberado pela censura do que, por exemplo, uma peça de Nelson Rodrigues. A censura aceitava uma mulher aparecendo como objeto e sendo dominada pelo homem, mas não tolerava um erotismo escrachado que devassava uma família burguesa", analisa a professora Cristina Costa, da USP.

DESENHO ANIMADO Os censores não escolhiam o que analisar, apenas recebiam uma escala de trabalho que poderia ter um filme de Sydney Pollack pela manhã, uma letra da Legião Urbana à tarde e, para terminar o expediente, um nem tão inocente assim filminho para crianças. "Tinha que assistir de tudo e com muita atenção. Até desenho animado tinha cena de sexo", conta a ex-censora Maria das Dores Oliveira Freire, 62.

Viviane da Rosa diz que muitas vezes ficava louca para assistir a filmes que não faziam parte da ordem de serviço dela. "Tinha um Costa-Gavras à tarde e eu estava escalada para ver uma porcaria de um pornográfico de manhã. Às vezes pedia ao chefe para ver por pura curiosidade, tinha muita coisa boa lá", afirma.

Em casa, ela guarda verdadeiras preciosidades na forma de pareceres originais. Da letra da música "Faroeste Caboclo", ela sugeriu em 1987 que fossem retirados da saga de João de Santo Cristo três "expressões vulgares": "comia todas as menininhas da cidade", "com o cu na não" e "filha da puta".

Apesar de, como frisa o texto, haver várias referências a drogas na composição sobre o homem que chega a Brasília "para se tornar traficante e bandido de renome", a censora considerou que não havia lá apologia ao consumo.

A maior preocupação era abrir um precedente, dizem as censoras. Se um palavrão fosse autorizado, ele poderia ser reproduzido, a partir daquele momento, em todas as obras. A música teve a radiodifusão e todo tipo de execução pública proibidas; o disco vinha com essa advertência. Para driblar a proibição, como a música liderava as paradas de sucessos, as rádios colocavam um sinal sonoro para encobrir os palavrões.

Qualquer produção cultural exibida no Brasil precisava passar previamente pelo crivo da Polícia Federal, que manteve até 1988 a Divisão de Censura de Diversões Públicas. A gênese da divisão estava num órgão similar criado por Getúlio Vargas em 1934, mas instalado oficialmente no auge do regime militar, em 1972.

"Os censores não são uma invenção da ditadura e sempre tiveram um discurso autêntico, genuíno contra os excessos morais. Realmente acreditavam que estavam fazendo o melhor para a sociedade", diz o professor Carlos Fico, coordenador do grupo de estudos do regime militar da UFRJ.

Para ele, houve duas censuras durante a ditadura: uma buscava os subversivos, e a outra mirava os imorais, em sua maioria artistas já familiarizados ao controle.

Em 1974, para suprir a demanda crescente por controle, a Academia Nacional de Polícia promoveu um "curso de transformação" dirigido aos interessados em se tornarem censores. Para atuar como técnico de censura, a legislação exigia curso superior como ciências sociais, direito, filosofia, jornalismo, pedagogia ou psicologia.

"Tinha exercício físico, curso de português, curso sobre cinema. Como fazer o parecer, o que buscar. Nos tempos antigos, o parecer vinha detalhado, com [campos para] enredo, personagens, mensagens e classificação final. Depois passou-se a fazer o parecer em folha em branco, sem roteiro", recorda Teresa Cristina dos Reis Sardinha, 66.

Ela afirma não entender por que o cargo de censor foi tão criticado: "Nós éramos funcionários públicos, pagos pelo Estado e exercendo função legal e de acordo com as leis do país. A censura estava lá na Constituição Federal, tinha de cumprir".

BIQUÍNI Os usos e costumes no tempo da ditadura não eram alvos exclusivos da censura oficial, como os arquivos do Ministério da Justiça mostram. Lá repousa um excepcionalmente bem conservado --para uma peça de 38 anos de idade-- modelo P de biquíni vermelho, com a foice e o martelo bordados em amarelo. Segundo o então titular da pasta, Armando Falcão, um general havia lhe remetido o material. Em um bilhete a mão, ele pede a um assessor para "tomar providências cabíveis".

Sobrou para a PF, que "solucionou o assunto", como registra ofício enviado a Falcão e no qual o chefe da polícia conta que os responsáveis da Requintada Modas e Confecções prometeram retirar de circulação modelos com "símbolos alusivos a representações de países e insígnias militares".

Encontrado pela equipe que tria o material a ser descartado ou arquivado em definitivo, o traje de banho é a mais famosa peça do acervo e é usado de tempos em tempos pelo ministro de plantão para lembrar como eram as coisas quando se censurava até biquíni.

Sob a sigla DCDP, a divisão da polícia combateu com vigor o comunismo e a subversão no auge da ditadura. Num momento em que o regime agonizava, a censura que antes tudo vetava passou a tolerar mais --desde que com cortes, sob uma "nova política governamental no tocante às divisões públicas", como dizem os pareceres da época.

Após o fim do regime militar, a censura passou seus últimos anos lutando basicamente contra a imoralidade, em especial contra sexo explícito, drogas e palavrões, aos quais dedicava força total. Levantamento do pesquisador Carlos Fico mostra que em 1981 o número de censores chegou ao máximo de 221, sendo 59 em Brasília e outros 162 espalhados pelo país.

AVALANCHE A equipe reforçada da censura foi surpreendida por uma avalanche de filmes pornô no início dos anos 1980. "Os conflitos entre censura e Justiça se tornaram cada vez mais comuns, e o país assistiu a uma verdadeira indústrias de liminares pró filmes pornô", afirma o escritor e jornalista Inimá Simões, autor do "Roteiro da Intolerância - A Censura Cinematográfica no Brasil" (ed. Senac São Paulo, 1999).

Para os censores, a briga com a Justiça significava, quase sempre, energia desperdiçada. "Eles [os produtores] iam ao Judiciário e conseguiam liberar o filme na íntegra. A gente tinha uma trabalheira danada para sugerir os cortes, porque éramos extremamente criteriosos, mas não dava em nada. Exigiam liberação integral e, depois, faziam propaganda com uma tarja de "censurado". Para eles era o máximo dizer que o filme havia sido censurado", recorda Viviane.

Quando um trio divergia sobre o que devia ou não ser liberado, outra equipe era convocada. Se o placar permanecesse apertado, até 20 censores se juntavam para debater. Foi o que houve com o filme "Je Vous Salue, Marie" (1985), de Jean-Luc Godard, em que a história da virgem Maria é transposta para o mundo contemporâneo, com direito a adultério e nu frontal. Houve protestos e censura em diversos países católicos, além de críticas do próprio papa João Paulo 2º.

Apesar de o filme ter mobilizado várias equipes da Divisão de Censura, os técnicos decidiram liberá-lo, com cortes, recorda Viviane. Mas o então presidente José Sarney sucumbiu à pressão da Igreja Católica e determinou que a película fosse interditada em 1986, num episódio clássico que ilustra as dificuldades do período de adaptação à democracia.

CARTAS Mesmo antes do fim da ditadura, houve episódios em que os vetos não se basearam apenas no livre-arbítrio do regime. A censura, bem como o Ministério da Justiça, sucumbia a muitos pedidos, apelos e pressões populares, muitas delas em cartas dos mais diferentes tipos de missivistas. Pode parecer paradoxal numa ditadura, mas o governo também prestava contas a parte do povo.

"O ministério luta pela anulação da sentença liberatória", informou o órgão num telegrama a um cidadão que pediu, em 1982, a suspensão imediata do ousado "Calígula". Retrato dos casos sexuais bizarros do tirano romano, a fita fora filmada três anos antes e interditada sucessivamente pela Polícia Federal e pelo Conselho Superior de Censura. Também ganhou a "repulsa" do Ministério da Justiça. Ainda assim, foi liberado por juízes, o que originou a mensagem do cidadão pedindo a suspensão imediata do filme.

A mensagem faz parte de um conjunto que reúne dezenas de telegramas, cartas e abaixo-assinados, ainda hoje sob a tutela do Ministério da Justiça, protestando contra a violência e o sexo explícito nos meios de comunicação e nas telas de cinema e TV. Entre elas, uma carta endereçada em 1977 ao então presidente Ernesto Geisel chama a atenção.

Com caligrafia caprichada, ostenta florzinhas coloridas em torno do pedido de uma menina de 9 anos para que sejam tiradas de circulação revistas com mulheres peladas na capa. "Isto é uma pouca vergonha", escreveu a criança, que também convidou Geisel a visitá-la no Sul de Minas.

Entre 1968 e 1985, de acordo com estudo do pesquisador Carlos Fico, a DCDP recebeu --ou foram encaminhadas a ela por outros órgãos-- mais de duas centenas de cartas. Mensagens ao presidente ou ao ministro da Justiça também eram direcionadas à "Prezada Censura".

STALLONE Nem sempre, porém, era preciso pressão popular para mudar uma decisão. O próprio ministério forçou os censores a reverem a posição tomada em relação a "Stallone: Cobra" (1986), já que a pasta promovia uma campanha contra a violência, abundante no filme de Sylvester Stallone.

Depois da reavaliação dos censores, pelo menos quatro cenas adicionais precisariam ser eliminadas num prazo de 48 horas. As sugestões de cortes incluíam as imagens de um refém sendo morto pelas costas, de um vigia esmagado contra a parede por um carro, a de um bandido sendo queimado vivo, além da luta mortal travada entre "Stallone e um psicopata".

O filme, contudo, já estava em cartaz. Calculando o prejuízo, a produtora sugeriu que se aumentasse a restrição da faixa etária, pulando de 14 anos para 18 anos.

Entre o trio de censoras escaladas para rever os pareceres estava Telma Lino, que também já tinha defendido cortes no pornô "Quanto mais Dentro, Melhor". Telma não se sente confortável ao falar sobre os tempos de censura. "Tínhamos curso superior, éramos muito preparados", afirmou. E encerrou a conversa dizendo estar atrasada para a missa.

Após 1988, os censores e censoras foram realocados no governo. Alguns assessoraram a redação da nova Constituição. Defendiam a manutenção da censura, mas com mudanças e flexibilização da legislação. Foram vencidos. Ouviram de outros técnicos e de parlamentares da Constituinte que estavam ali para ser censurados, e já não o contrário.


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