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Marginais em festa

Charles Peixoto leva Nuvem Cigana à Flip

FRANCESCA ANGIOLILLO

RESUMO Na esteira da reedição de Leminski, Ana Cristina César e Waly Salomão, encontro literário de Paraty recebe ex-integrante do coletivo carioca que fazia teatro e música e "dizia poesia" nos anos 1970. Autores, estudiosos e editores analisam como a geração que nasceu à margem do mercado editorial é agora assimilada por ele.

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"Entre escritor/ e leitor/ posta-se o intermediário,/ e o gosto/ do intermediário/ é bastante intermédio./ Medíocre/ mesnada/ de medianeiros médios/ pulula/ na crítica/ e nos hebdomadários."

Estes versos de "Incompreensível para as Massas", poema de Vladímir Maiakóvski, em tradução de Haroldo de Campos, poderiam servir de epígrafe à produção poética daqueles que, livreto em punho, ofereciam sua poesia diretamente ao leitor. Volumes caseiros, produzidos manualmente à beira do sistema editorial, eram o traço de união do que se chamou "poesia marginal", nos anos 1970 e 80.

Em parte devido ao estrondoso sucesso da "Poesia Total", de Paulo Leminski --que, impresso em tiragem inicial de 5.000 exemplares, vendeu 100 mil em um ano e meio--, os marginais estão de volta ao centro do debate.

Nesta semana, na Flip, um deles, Charles Peixoto, se reúne com Eliane Brum e Gregorio Duvivier para falar das relações entre prosa e poesia, na quinta (31), às 12h. No mesmo dia, às 18h, na FlipMais, programação paralela do evento, debate com a compositora e escritora Adriana Calcanhotto na mesa "Versos de Risco "" do Haikai à Poesia Marginal".

Charles lança neste mês sua obra reunida --embora não completa. "Supertrampo" [7Letras, R$ 39, 200 págs.] abarca poemas de "Travessa Bertalha 11" (1971) até seu livro mais recente, "Sessentopeia" (2011) --alguns inéditos entraram de raspão no final da edição.

O convite para a festa literária deve servir a despertar o interesse pela poesia, hoje pouco conhecida, de Charles e do grupo Nuvem Cigana, coletivo multicultural do qual fez parte, que agitou o Rio na virada dos anos 1970 para os 80 e que reuniu, entre muitos outros, o também poeta Chacal e o compositor Ronaldo Bastos.

TOCA Charles Peixoto abre a porta vestindo calça de flanela xadrez e crocs azuis. O pequeno apartamento meio escondido no final do Leblon é sombreado e tranquilo. Faz pensar mais numa toca do que na rua ruidosa de seus poemas de juventude, em que meios de transporte são moldura para recordações ("tenho duas meias de lã metidas no saco/ e a janela do ônibus para pensar") ou um passeio pelo bairro onde nasceu em 1948 tem algo de ameaçador, como em "Colapso Concreto": "vivo agora uma agonia:/ quando ando nas calçadas de Copacabana/ penso sempre que vai cair um troço na minha cabeça".

Neto do poeta Ronald de Carvalho (1893-1935), a quem deve o nome de batismo, Carlos Ronald de Carvalho, Charles procurou evitar sempre qualquer vínculo com a produção poética do antepassado modernista ou com uma herança cultural que não teve.

"A família onde fui criado não tinha livro em casa", diz, lembrando a história segundo a qual a biblioteca do avô teria sido dilapidada por amigos ainda à saída do velório do autor de "Luz Gloriosa", morto num acidente automobilístico.

"Comecei a comprar uns livrinhos, coleção Nossos Clássicos, baratinha. Li os modernistas, os clássicos mesmo achava chato", lembra Charles. "Gostava do Manuel Bandeira, do Oswald, do Mario. Americanos, russos, Maiakóvski, fui adquirindo do jeito que dava. Aí comecei a escrever."

Menino, Carlos estudava em um colégio tradicional de Botafogo, o Santo Inácio. "Era péssimo aluno. Até que tomei um pau no quarto ginasial e fui pro Princesa Isabel." O novo colégio, diz, seria "uma maravilha, porque tinha mulher". A professora de português do adolescente era Ana Maria Machado, "uma lindeza, muito novinha, tinha 20 e poucos anos". "Um dia teve uma redação e ela falou: Você tem jeito pro negócio'. Pensei: Estou impressionando a gata'. Aí acho que a coisa evoluiu, me deu mais força, comecei a catar mais coisas, fui lendo."

Ainda assim, pensou em fazer arquitetura, para ficar na tradição dos tios engenheiros, mas com mais criatividade. Não passou nesse vestibular, mas sim no da ECO, a Escola de Comunicação da UFRJ, onde foi colega de Chacal.

Na época, conheceram Guilherme Mandaro. Militante no movimento estudantil e também poeta, ele seria o responsável pela impressão clandestina de "Muito Prazer, Ricardo", de Chacal, e "Travessa Bertalha 11" --que Charles já assina com o pseudônimo de prenome anglicizado e sobrenome tirado "do nada", como recorda--, rodados numa noite de 1971 no mimeógrafo do cursinho onde Mandaro lecionava história.

De Mandaro, Charles diz que "era muito culto: ele sim, tinha uma biblioteca, tinha lido tudo". Tornou-se, por tudo isso e pelo seu suicídio, aos 26 anos, em 1979, égide mítica do que seria a Nuvem Cigana, ao qual se incorporariam um pouco mais tarde.

COLETIVO O coletivo de nome hippie reuniu, além de Charles, Chacal e Mandaro, outros poetas, como Ronaldo Santos e Luis Olavo Fontes, o fotógrafo Cafi e o compositor Ronaldo Bastos (que havia registrado esse nome fantasia, pensando em fazer uma produtora como a Apple, dos Beatles --"as coisas eram ambiciosas", sorri Charles). E mais um bom número de artistas, arquitetos, músicos mais ou menos frequentes.

A sede do grupo era um casarão em Santa Teresa, onde viviam a engenheira Lucia Lobo e o arquiteto Dionisio, o Diô, seu primeiro marido --o segundo, o escritor Claudio Lobato, irmão de Ronaldo Santos, hoje tenta viabilizar, com a produtora Paola Vieira, um documentário contando a história do coletivo, "As Incríveis Artimanhas da Nuvem Cigana", em fase de captação de recursos.

Se não nasceu ali uma produtora do porte ambicionado, a Nuvem conseguiu, de todo modo, interferir no clima cultural do Rio naqueles tempos, promovendo as tais Artimanhas, encontros nos quais se subia ao palco --muitas vezes improvisado, muitas vezes nem palco-- para apresentar peças e números musicais e para dizer poesia (não se usava "declamar", que é coisa de salão).

A primeira dessas Artimanhas se deu em outubro de 1975. Pensada inicialmente como uma exposição de livros e de arte, ao longo de três dias, na livraria Muro, em Ipanema, a festa acabou abrindo espaço, sem planejamento, para a poesia, dita de "impromptu".

Após ter já tomado algumas doses de alert limão (drinque cuja composição exata permanece desconhecida), Chacal abriu os trabalhos, dizendo seu "Papo de Índio". E o formato, nascido assim organicamente, se instaurou.

Orgânica também era a orientação política do coletivo, que resistiu à sistematização dos grupos de estudos, das leituras marxistas que fundamentavam a luta antiditadura. "Ninguém seguia, todo mundo achava chato. Era um grupo de reação, mas com um approach' meio anárquico. A esquerda achava que a gente era alienado, maconheiro, drogado, maluco, e a direita achava que a gente era subversivo", define Charles.

Em uma cena, a resistência segundo a Nuvem era assim: sair sambando, qual num cortejo do Charme da Simpatia (bloco carnavalesco da trupe), enquanto a polícia ameaçava dispersar no cassetete uma Artimanha no vão do Museu de Arte Moderna.

EJACULAÇÃO A possibilidade de "dizer" ou "falar poesia" acabaria se transformando em finalidade. "Num determinado momento, essa coisa começou a ser tão determinante que o texto começou a mudar", conta Charles Peixoto. "Ditos", os "quase haicais" dos primeiros livros do selo Nuvem Cigana pareciam uma "ejaculação precoce", segundo o poeta. "Começaram a sair uns textos maiores, escritos para serem falados."

Na apresentação que escreveu para "Nuvem Cigana "" Poesia e Delírio no Rio dos Anos 70", coletânea de depoimentos e poemas que organizou pela sua Azougue em 2007, o poeta e jornalista Sergio Cohn assim resume o espírito dessas reuniões: "Nas Artimanhas, a poesia pode finalmente se libertar da solidão do papel para se tornar uma manifestação coletiva. Para usar a feliz expressão de Chacal, o Brasil descobriu a palavra propriamente dita'".

O segundo poema "dito" na Artimanha inaugural havia servido de passe de entrada a Bernardo Vilhena, incorporado ao grupo um pouco mais cedo, naquele mesmo ano. Vilhena vinha trabalhando com artes gráficas e assumiu produzir em cima da hora o livro "América", de Chacal, no lugar do artista plástico Carlos Vergara.

Na ida ao bairro de São Cristóvão, onde ficava a gráfica, Vilhena revelou ao novo conhecido também escrever poesia. E ali, esperando o ônibus, disse a Chacal seu poema que sabia de cor e que seria seu hit de Artimanhas, e por muito tempo depois, "Vida Bandida", na versão musicada por Lobão.

Responsável mais tarde por outro sucesso dos rádios, "Menina Veneno", gravada por Ritchie, Vilhena enveredou pela produção musical e editorial. Continuou a escrever poesia e, coincidentemente, como Charles, tem agora sua obra poética reunida, em "Vida Bandida e Outras Vidas" [Azougue, R$ 42, 200 págs.].

Ele recorda o caráter aberto da Nuvem Cigana. "A gente teve primeiro esse negócio do coletivo, uma coisa inédita. Havia pessoas com diferentes habilidades. O cara que escrevia, o que fotografava, o que diagramava, o que fazia o cartaz. Iam acabando as funções. Graças a Deus, sempre tinha alguém que se oferecia para ser o cara que colava o cartaz."

O que se produzia na Nuvem era muito discutido, de forma "intuitiva", diz Charles. "O Chacal era conhecido como Márcia de Windsor" --em referência à jurada de programa de calouros que "achava tudo ótimo". "Eu era o Pedro de Lara! Tudo eu criticava."

A mentalidade mais agregadora de Chacal talvez explique por que ele, de certa forma, se tornou um elo perdido entre os nefelibatas de então e os jovens poetas de hoje. O formato das Artimanhas, em alguma medida, se perpetua no projeto CEP 20.000, que ele toca há 24 anos no Rio --primeiro no Espaço Sérgio Porto, no Humaitá, e, desde há alguns meses, na casa de shows Imperator, no Méier.

"Guardados os contextos bem diferentes, o CEP e as Artimanhas são bem semelhantes", diz Chacal. "A iconoclastia, a experimentação, a informalidade, são as mesmas. A mistura das diversas linguagens e gerações e a intimidade das pessoas com a poesia falada são bem outras."

Ele, que teve sua obra produzida até 2007 reunida em "Belvedere" --dentro da coleção Ás de Colete (Cosac Naify/ 7Letras)--, nota pouca regularidade na produção de seus companheiros. "Os poetas da Nuvem publicaram pouco desde os anos 70. Ronaldo Santos e Bernardo Vilhena não publicaram nenhum livro de poemas". Mas diz admirar muito os poemas recentes de Charles. "Mantêm a pegada esdrúxula", define.

ENCALHE Antes deste "Supertrampo", Charles Peixoto havia lançado, em 1985, "Marmota Platônica", reunindo seus seis primeiros livros. Um fato, porém, o fez desistir por um longo tempo de publicar seus escritos.

"Quando eu fiz o Marmota', foi a maior empolgação, uma festa ótima, aquela coisa. Aí passou o tempo e não aconteceu nada. Nem uma crítica que dissesse que merda!'. Um dia eu não tinha mais livros e fui lá na [editora] Taurus para pedir uns cinco exemplares. O editor falou entra ali'. Entrei e vi uma montanha de livros. Aquela visão me deprimiu. Para que fazer isso? Para dar comida pra traça? Mas continuei escrevendo."

Nesse tempo seguiu, e segue, na Rede Globo, onde havia começado a trabalhar em 1981, primeiro como redator publicitário na agência interna da TV --pondo fim a uma carreira de bicos e lares errantes, cerca de um ano antes do nascimento de sua filha, Luísa.

Depois de um tempo "batendo ponto" na agência, "às vezes virado, de ressaca", fez a oficina de roteiro de Doc Comparato. Então passou a colaborar, de casa, "ganhando menos, mas com liberdade", com o núcleo de humor da TV.

Começou desenvolvendo esquetes de "Viva o Gordo", programa de Jô Soares. Escreveu "Armação Ilimitada" e "Malhação". Seu trabalho mais recente está atualmente no ar --"O Rebu", adaptação da novela de Bráulio Pedroso (1974), em exibição na faixa das 23h.

Charles conta ter hesitado em fazer a nova coletânea. Seu editor, Jorge Viveiros de Castro, a defende, dizendo que "Supertrampo" "traz uma releitura atualíssima da sua obra de juventude junto com sua poesia madura', que revela o mesmo vigor e criatividade que sempre marcaram seu trabalho".

"É interessante estarem lançando obras reunidas de gente viva e que estaria no segundo plano do panorama poético daquele tempo", aponta a crítica literária Flora Sussekind. "Não no interior de cada grupo em que operavam, mas no ponto de vista mais global, de recepção, seriam figuras de fundo. Uma margem da margem", diz.

Os nomes mais centrais, digamos, por serem mais estudados e difundidos, seriam os há pouco reeditados pela Companhia das Letras.

Sofia Mariutti, editora responsável pelos volumes que coligem as obras completas de Leminski, Ana Cristina César e Waly Salomão, lançados pela editora de Luiz Schwarcz de um ano e meio para cá, diz que os três conjuntos integram um projeto da casa de "resgatar autores que carregavam esse rótulo de marginais e por isso andavam injustamente marginalizados das vitrines das livrarias".

Paulo Werneck, curador da Flip, também comenta a centralidade atual da poesia dos anos 1970-80. "Está se consumando a canonização dos marginais' --já havia espaço nas universidades, mas agora o ciclo se completa."

"Talvez isso se explique por circunstâncias biográficas, mas acho que também há uma explicação cultural, histórica; esses autores aconteceram num momento de desbunde' que, a partir dos anos 90, já soava datado' para críticos, jornalistas e editores. Fechou-se o horizonte em nome de coisas supostamente mais elevadas. É muito bom que retorne a abertura para esses malucos", diz Werneck.

AVACALHAÇÃO Foi esse horizonte fechado o que instigou Fernanda Medeiros a estudar a Nuvem Cigana em seu mestrado, concluído em 1997. "O que despertou meu interesse foi o discurso da crítica literária, que, em sua maioria, avacalhou aquela poesia mais marginal, a do Charles, do Chacal", diz Medeiros, que leciona literatura inglesa na Uerj. Ela aponta, porém, para um movimento lateral ao da academia, em que poetas/editores como Ítalo Moriconi e Carlito Azevedo "reavaliaram" a poesia dos anos 70.

Na opinião de Carlito Azevedo, a Companhia tem publicado os poetas marginais que "mais rapidamente foram canonizados'". "Mas diga-se de passagem que, quando não eram tão canônicos assim, o Luiz Schwarcz já os editava na saudosa coleção Cantadas Literárias, da editora Brasiliense."

Carlito comenta a dificuldade que possa ter o "leitor não especializado" em localizar, hoje, "outros excelentes poetas da época, como o Eudoro Augusto e a Angela Melim, que há tempos não recebem edições encontráveis' --mas vale a pena o esforço de procurar".

Para o poeta e editor, porém, a maior contribuição que permanece daquela poesia hoje, "quando aquele tipo de flagra no ego' já não parece tão produtivo, está na forma como encararam o suporte material dos textos, ou seja, a liberdade que tomaram em relação ao formato do livro tradicional a partir do momento em que assumiram que sua veiculação fugiria dos padrões habituais".

Ele enumera algumas tentativas, como a do selo Lábia Gentil (da galeria Gentil Carioca) de retomar "um pouco desse espírito que foge do padrão comum a que as editoras continuamente estão submetendo os poetas, na duvidosa expectativa de que eles venham a disputar um lugar ao sol do mercado".

"Essas produções artesanais, em geral dirigidas por artistas plásticos e poetas, são a melhor notícia para a poesia dos últimos tempos, e uma herança direta do trabalho de artistas como Diô, Cafi, Sérgio Liuzzi, que deram cara e feições à poesia marginal."

RETRÔ Sofia Mariutti aponta um aspecto mercadológico no interesse algo revigorado em torno da poesia marginal. "Acho que tem a ver com a força do retrô, as máquinas de escrever, mimeógrafos, as vitrolas e vinis e máquinas fotográficas estão fetichizados, há uma dose de saudosismo." Mas também recorda essas editoras artesanais, "surgindo nos fundos dos quintais, que acabam retornando a esses meios de produção porque eles fazem sentido em escalas menores".

Para Claudio Lobato e Paola Vieira, que têm se debruçado sobre a história da Nuvem Cigana para seu filme, as questões são mais de fundo. Na opinião de Lobato, há uma "necessidade de se reinventar e de se divertir com isso; de tirar chinfra com a cultura e a civilização". "Ampliar o campo do possível, como disse o Sartre aos estudantes em 68."

"O mundo andava muito chato de uns tempos para cá, com todo mundo querendo fazer tudo certo, para vencer num ambiente muito competitivo e materialista. Embora o contexto seja outro, a poesia marginal teve naquela época essa função de romper, de mudar o foco. E hoje eu vejo essa necessidade", diz Vieira.

Charles Peixoto diz não saber responder por que haveria essa possível redescoberta dos marginais. Mas a saúda diante de uma poesia que voltou ao beletrismo e que pode até ser "muito bem feita", mas que lhe parece uma "involução" do que a sua geração conquistou. Depois pondera.

"Será que a gente era assim tão importante? Como é avaliado isso que a gente fez? Nunca procurei saber, mas será que nego avalia isso como um tipo de poesia de um momento histórico e que, saindo daquele momento, não presta para nada? Ou presta ainda?"


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