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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O violão chega à universidade

Rio de Janeiro, 1980

RICARDO TACUCHIAN

As primeiras linhas de "Triste Fim de Policarpo Quaresma", romance que Lima Barreto publicou no alvorecer do século 20, descrevem o metódico major Quaresma chocando seus vizinhos do pacato bairro de São Januário, no Rio de Janeiro: o militar estava recebendo em casa um sujeito "baixo, magro, pálido, com um violão agasalhado numa bolsa de camurça". Escândalo. "Um violão em casa tão respeitável! Que seria? [...] A vizinhança concluiu logo que o major aprendia a tocar violão. Mas que cousa? Um homem tão sério metido nessas malandragens!"

Cinco décadas depois, a situação --o violão ser visto como símbolo de malandragem-- ainda se repetia, num Rio de Janeiro prestes a deslanchar a bossa nova, na cidade natal de Villa-Lobos, ele próprio um violonista. E eu testemunhei a cena. Corriam os anos 1950. Eu estudava na Universidade do Brasil (que se transformaria na UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro) e certo dia um colega entrou na então Escola Nacional de Música segurando um violão.

Um dos professores imediatamente chamou a atenção do rapaz para a inconveniência --um "instrumento de má reputação numa escola séria?!"-- Fiquei chocado. O rapaz se encolheu e quase escondeu aquele instrumento rasteiro e desclassificado.

Tornei-me professor da Escola de Música, uma instituição que -- reconheço-- teve sempre um caráter algo elitista. Instrumentos como o bandolim e o cavaquinho só muito recentemente foram admitidos como especialização. Mesmo o saxofone foi uma conquista.

Em 1980, o violão continuava sendo um instrumento sem chance de ser carregado por um aluno da Escola de Música da UFRJ rumo à sala de aula. Mas um violonista assumira a direção da Sala Cecília Meireles, um dos mais importantes palcos de concerto do país, logo ali do outro lado da rua. Turibio Santos estava recém-chegado de uma longa temporada na Europa, fora aclamado por lá em palcos e em gravações de grande sucesso.

Percebi que a hora era essa --e Turibio seria meu grande aliado. Atravessei a rua e propus que criássemos a cadeira de violão. Ele topou meu desafio e acabou tornando-se o primeiro titular do primeiro curso de violão numa universidade pública brasileira. E meu grande conselheiro na composição para o instrumento.

Sou um compositor voltado para a música sinfônica e de câmara, com formação de pianista, e sigo defendendo o violão, que ocupa gorda fatia do meu catálogo de obras. O compositor de ofício não precisa ser trompista ou violoncelista para escrever corretamente para esses instrumentos, mas é fundamental que tenha sempre um bom solista como consultor.

A relação compositor/intérprete sempre foi muito produtiva, em busca de resultados mais convincentes. Em toda a história da música, os grandes compositores se aconselharam com solistas --exemplo clássico é o da relação entre Brahms e o violinista Joachim, para quem escreveu seu famoso "Concerto para Violino e Orquestra".

Mas é preciso dizer: a escrita do violão clássico é um caso particular, porque sua aparente simplicidade esconde muitas armadilhas.

Sempre me seduziu a dimensão acústica do violão. O violonista toca abraçado às curvas sensuais de seu instrumento. E, já que começamos essa conversa com Lima Barreto e seu major, encerro com ele: "Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poético-musical característica da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha".


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