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Tréplica

Arte sem tutela

Hélio Oiticica e Lygia Clark não precisam de protetores

RESUMO Em resposta a réplica publicada na "Ilustríssima" de 26/2 por César Oiticica Filho, organizador de "Museu É o Mundo", de Hélio Oiticica, Flávio Moura aponta falta de referências na edição, defende seus argumentos quanto à relação de Hélio com o concretismo e reivindica a legitimidade de sua linha de pesquisa.

FLÁVIO MOURA

EM RESENHA PUBLICADA na "Ilustríssima" de 29/1, parto da discussão do processo de consagração de Hélio Oiticica (1937-80) e Lygia Clark (1920-88). A julgar pelas reações que suscitou, está claro que esse debate precisa ser feito.

César Oiticica Filho, sobrinho do artista, curador do Projeto Hélio Oiticica e organizador de  "Museu É o Mundo" [Azougue, 248 págs., R$ 80] , livro de ensaios de Hélio, desqualifica a resenha com base em supostos "erros".

Afirma que não foram mencionados os textos inéditos incluídos no volume, atribuindo a mim a afirmação de que o livro seria mera reprodução da coletânea "Aspiro ao Grande Labirinto", de 1986.

A passagem em questão não fala sobre a ausência de textos inéditos na coletânea, mas sobre o fato de que o livro carece de seleção e organização criteriosa dos textos mais representativos de Hélio, trabalho que não é realizado desde 1986; e não é mesmo.

"Aspiro ao Grande Labirinto", organizado por Luciano Figueiredo, figura até hoje como principal referência para quem procura ensaios de Hélio e virou peça de colecionador. Era de esperar que, tantos anos depois, uma nova coletânea mostrasse a que veio.

E o que temos? Um amontoado de textos sem nenhuma referência. Não sabemos o critério de seleção. Há textos que não trazem a data em que foram escritos. Não há indicação sobre publicações anteriores em livros, catálogos, revistas ou jornais. Sabemos apenas que não devem ser lidos isoladamente, "e sim como parte da obra". Isso exime o organizador da lição de casa? Dotar de transcendência toda e qualquer anotação de Hélio não é uma forma de mitificação?

É como se Hélio fosse apresentado "por inteiro" pela primeira vez. Meticuloso, dificilmente ele aprovaria uma edição assim. Basta cotejar "Museu É o Mundo" com o catálogo da retrospectiva no exterior em 1992, ou com "Body of Colour", na Tate Gallery (2007), em Londres (org. Mari Carmen Ramirez), ambos generosos em referências.

Agora tudo se passa como se esses e outros trabalhos não existissem. Oiticica Filho parece imbuído da missão de veicular apenas uma versão da trajetória do tio: a sua.

CONCRETISMO O curador aponta um segundo "erro" na resenha: diz ser incorreto afirmar que Hélio passa a escrever como um concretista nos anos 60 porque sua reaproximação com os irmãos Campos só se deu em... 1967! Onde está o equívoco?

O texto "Subterrânia 2" (1969), incluído em "Museu É o Mundo", é um entre os diversos exemplos dessa aproximação nos anos 60. Oiticica Filho afirma que "não há nenhum fundamento na tentativa de traçar um paralelo entre esse diálogo entre Hélio e os poetas concretos e o afastamento do artista com Ferreira Gullar, ocorrido na primeira metade da década de 1960, anos antes". Será?

Por que é tão persistente a polarização entre os "frios" paulistas e os "sensuais" cariocas, mesmo após a ligação dos concretistas de São Paulo com Hélio e com os baianos da Tropicália? Perguntas assim vêm sendo feitas por autores como Gonzalo Aguilar e Michael Asbury, e estão na base dos argumentos da resenha.

Em sua introdução a "Museu É o Mundo", Oiticica Filho afirma que seu objetivo é ir contra os "setores conservadores da arte", que só valorizam o Hélio do fim dos anos 1950 ao início dos anos 1960. Eis aí, na trilha de Aguilar e Asbury, um caminho a explorar nessa cruzada contra os "conservadores". Mas antes é preciso ganhar musculatura como crítico e abandonar a passionalidade de sobrinho.

É legítimo que ele esteja à frente da curadoria do Projeto H.O., a que se deve tributar muito do que foi construído em torno do artista. Mas um debate crítico digno do nome será tanto pior quanto mais tutelado por instituições desse tipo.

CENÁRIO A reação intempestiva do curador é reflexo de um cenário recente, no qual o que não é aplauso deve ser banido, no qual uma resenha crítica se torna sinônimo de agressão ao artista.

Nota-se a mesma sanha de controle na lista de 13 "jovens críticos" chancelados em sua réplica. A pretexto de sugerir abertura para o novo, desqualifica o interlocutor e o exclui do campo, num índex às avessas, como se o sobrinho tivesse poder de controlar quem está autorizado a falar sobre o tio.

Na mesma edição da "Ilustríssima" foi publicada réplica aos comentários feitos à caixa de DVDs sobre Lygia Clark, organizada pela curadora Suely Rolnik. A resposta do crítico Afonso Luz rende uma discussão que terá de ser adiada -mas merece elogios por propor uma troca de ideias, não um ringue de luta livre.

No processo de consagração dos artistas, em curso desde meados dos anos 90, apagam-se dimensões relevantes de sua trajetória. A resenha não faz mais do que apontar alguns desses pontos. Isso só faz sentido em face da centralidade que esses artistas adquiriram no debate sobre arte no Brasil -centralidade que se produz por fatores que dizem respeito às obras, mas não apenas a elas, e que devem ser objeto de investigação.

Confundir essa proposta legítima com arrivismo é coisa de quem acredita que Hélio e Lygia precisam de protetores. Felizmente, eles já podem dispensar esse tipo de condescendência.

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