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PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Últimos diálogos

Cena inédita de roteiro de Millôr

RESUMO Esta cena inédita pertence ao roteiro cinematográfico "Últimos Diálogos" (1993), que Millôr Fernandes escreveu para a atriz Fernanda Montenegro, a pedido do cineasta Walter Salles Jr. Na Áustria, a pianista Marília decide abandonar a carreira e voltar para o Brasil. Seu empresário Cazale tenta dissuadi-la.

MILLÔR FERNANDES

CENA XI - INTERIOR. ESCRITÓRIO DO TEATRO.

Ambiente razoavelmente grande, uns 40 metros quadrados, cheio de objetos, sobretudo recordações do passado do teatro. Poltronas de couro, grandes, confortáveis. Pequeno bar, também revestido de couro, pesado, a um canto. Coisas bem modernas - um quadro pop, uma televisão enorme, vídeo.

CAZALE afundado numa poltrona, abatido. Em pé, no bar, MARÍLIA enche um copo com água mineral, outro, menor, com boa dose de uísque, gelo. Surpreendenteme nte dá o copo de água a CAZALE, fica com o de uísque. Conversam em italiano.

MARÍLIA - Está decidido, CAZALE.

CAZALE - Nada está decidido -há um mês nem podia lhe passar pela cabeça abandonar uma temporada. Quanto mais a carreira. Quanto mais (enfatiza) quanto mais voltar pro Brasil. Imagina! Voltar pro Brasil! Claro que isso não é uma ideia nova. Mas por que tudo tão rápido e tão definitivo, agora?

MARÍLIA - Há um mês a minha mão direita acompanhava a esquerda (dá a ideia, movimentando as mãos comicamente). Jamais me passou a ideia de um divórcio (dá ideia, separando as mãos). Já não se entendem. Pergunta a elas, por que tudo tão rápido e tudo tão definitivo agora?

CAZALE (Sem drama.) - Se entendem muito bem ainda. É uma separação ocasional. Um desentendimento. Uma rusga.

MARÍLIA (Bebe. Não vai beber o copo todo. É uma bebedora "social") - Você sempre foi um mau profeta. Disse isso mesmo, de nós, um dia.

CAZALE - E estava certo. Estamos aqui juntos.

MARÍLIA - Mas em outra partitura. (Pausa.) E num arranjo bem diferente. Ô CAZALE, CAZALE, meu bom e velho amigo, você não aceita, você nunca aceita.

CAZALE - O quê, por exemplo?

MARÍLIA - Tudo.

CAZALE - Tudo mesmo? Você acha?

MARÍLIA - Faço um desconto. Quase tudo.

CAZALE - Por exemplo?

MARÍLIA - Aquele abalo que você teve quando sua irmã, uma italiana (falando obliquamente para a câmara) vejam só os senhores!, fugiu com um negro americano e foi ser hippie na ilha de Wright.

CAZALE - Você tem que reconhecer que, em 1960!, era um pouco demais. Mas acabei aceitando. Durante dois anos fui empresário de três mulatões meio americanos, meio italianos, meio ingleses -meus sobrinhos. E não sei o que é pior -ter uma irmã transviada ou ser empresário de uma banda heavy metal. Concorde em que eu sou a flor da sensatez. Um pouco cansado disso, confesso, mas a esta altura da vida, de que é que não estou cansado?

MARÍLIA - Que coisa mais ofensiva, CAZALE! Podia ter me poupado, aberto uma exceção. "Você, MARÍLIA, é a única coisa que jamais me cansa, é sempre uma surpresa e um frescor no meu coração".

CAZALE (Vai até ela, abraça-a carinhosamente.) - Perdão, MARÍLIA, você é uma exceção. Você, Marília, é a única coisa que jamais me cansa, é sempre um frescor no meu coração. (Noutro tom.) E algumas vezes, uma surpresa ingrata pro meu bolso de empresário.

MARÍLIA - Já fez as contas de quanto vai perder com o cancelamento dos contratos?

(Batem à porta.)

CAZALE - Entra.

RAPAZ (O mesmo que entregou o CD a CAZALE.) - Desculpe, dr. CAZALE, um instante só. (Vai até um armário, abre, não encontra o que quer. Fica contrafeito, percebe que está incomodando. Passa por CAZALE, que tem que recolher as pernas.) Desculpe. (Abre um armário do outro lado, se curva, não encontra o que deseja. CAZALE E MARÍLIA trocam olhares.) Desculpe, doutor CAZALE, por acaso o senhor viu uma carteirinha de couro amarelo por aí?

CAZALE - Uma carteirinha de dinheiro?

RAPAZ - Sim senhor. É do maestro Mandela.

CAZALE - Não vi, não. (MARÍLIA reage discretamente à sacanagem de CAZALE. O empregado pega uma bandeja no bar, dois copos, uma garrafa.)

RAPAZ - Desculpe. (Sai.)

MARÍLIA - Bem, como eu ia dizendo antes de sermos rudemente interrompidos: já fez as contas de quanto vai perder com o cancelamento dos contratos?

CAZALE - De quanto vamos perder? (Folheia um caderno que tira do bolso.) Doze mil, mais vinte e oito mil, mais treze mil, hi, bota mil nisso! Pelo menos cem mil dólares. Dava pra alimentar um milhão de crianças na Somália. Teu coração não se confrange?

MARÍLIA - Sabe que confrange mesmo? (Ela passa o copo pra mão esquerda, estende o braço, a mão esticada, palmas pra baixo e pra cima.) Mas os dedos têm razões que o coração não compreende. Vamos ter multas?

CAZALE - Não vou nem tocar na palavra cancelamento. Só vou falar em adiamentos. Os deste ano pro ano que vem, os do ano que vem...

MARÍLIA -... pro ano que não vem.

CAZALE - Virá. Todos os anos acabam vindo. Às vezes de má vontade, mas vêm.

MARÍLIA - Até um que não vem mais. Ou não nos encontra. Até o dia e o instante -e eu me lembro bem o meu dia e o meu instante- em que, abrindo uma porta, dobrando uma esquina, atravessando uma rua, ou apenas sentado -que importa a forma?- lá vem o golpe baixo que está guardadinho pra cada um de nós. Em papel de presente. Um jab curto no queixo, um pontapé na cara, e logo o golpe de misericórdia -se há misercórdia no destino- abaixo do ventre. Estourando a alma. Nos lembrando que somos mesmo, e só -adivinha o quê, CAZALE?- pó, meu amigo, pó. Muito pó. Mas não esse que o pessoal cheira agora por aí. O velho, o antigo. O da Bíblia. Pó. (Bate com força no braço de couro da poltrona, surpreendentemente sai mesmo algum pó. Ri. Olha pro céu.) Pô, não precisava ilustração. É só uma maneira de falar.

CAZALE - Para com isso, MARÍLIA. Que ideia é essa? Depressão por um negocinho na mão do qual daqui a seis meses você nem vai se lembrar? Não se esqueça de Wittgenstein.

MARÍLIA - Paul, o pianista, ou o outro?

CAZALE - Primeiro o irmão, o filósofo, o Ludwig. Nasceu aqui. Eu o conheci.

MARÍLIA - Não me diga!

CAZALE - Claro, antes dele virar gênio universal. Não leio filosofia, você bem sabe.

MARÍLIA - Sei, sei, sei.

CAZALE - Mas não me esqueci uma coisa dele: "A morte não é um episódio da vida. Ninguém vive a morte". O irmão dele aprendeu. Quando perdeu o braço direito na Primeira Guerra Mundial desafiou vários compositores a fazerem trabalhos só para a mão esquerda. E continuou um excelente intérprete.

MARÍLIA - Mas continuou maneta. Um pianista maneta. Uma curiosidade circense.

CAZALE (Se joga numa poltrona.) - Que crueldade, MARÍLIA.

MARÍLIA - Eu sei, CAZALE. Scriabin, Saint-Saens, Ravel, Richard Strauss, bota aí -todos compuseram pruma mão só. Não chega a ser uma limitação, é até uma boa. E é a primeira coisa em que pensa uma... deficiente manual. Infelizmente meu negocinho não é na mão, é na cabeça. Vai atingir a outra mão. Vai atingir tudo. Você já ouviu falar em Alzheimer?

CAZALE - JÁ. Uma doença inventada pela Rita Hayworth.

MARÍLIA - Que heresia, CAZALE. Ou, te imitando, que crueldade.

CAZALE - A imprensa explora os casos famosos. As novidades. Ultimamente você viu algum filme ou peça de teatro sobre alcoolismo? Há milhões de alcoólatras no mundo. Muito mais do que aidéticos. Mas saíram de moda. A mídia só fala de doenças tipo novidade; a aids, a Alzheimer. E os médicos gostam disso. Doenças pós-modernas lhes dão prestígio inacreditável. E nem quero falar do dinheiro que ganham. Você consultou médicos. Eu também. Dependendo do caso, o Alzheimer não é tão feio quanto se pinta.

MARÍLIA - Que médicos você consultou sem me falar nada? Quem te deu permissão? Quem te deu o direito de falar de minha decadência seja lá com quem for?

CAZALE - Eu te amo -e isso me basta como permissão. Tá bem, amor passado, amor com prazo vencido, sem direito a renovação, contrato cancelado - mas está aqui no meu cofre (bate no peito). Saiba agora, aqui, minha amiga, sem frescura, nem sentimentalismo - este é o momento de falar a verdade. Eu nunca cancelei esse contrato. (Longa pausa. MARÍLIA perplexa. CAZALE se joga no sofá de couro.) Gostou da declaração? (MARÍLIA o olha longamente. Ele fica contrafeito.) Estudei a noite inteira pra te dizer isso. Ficou bom, o texto? Interpretei bem?

MARÍLIA (Se aproxima dele. Se curva sobre ele, encosta o rosto no dele longamente, carinhosamente. Se levanta.) - CAZALE, meu querido, que prêmio, essa declaração, assim, já no fim do campeonato. Estou sem ar. (Teatral, disfarçando a emoção, olhando pro céu.) Meu Deus, eu não estou mais doente! Estava só brincando. Eu não vou mais embora. Quedê o piano, quedê o piano? Meu reino por um piano, uma espineta, uma flauta -eu toco qualquer coisa. (Ri, um riso falso, se vira de costas. Talvez esteja chorando. Batem na porta.)

CAZALE - Quem é?

MULHER (Com uniforme do Teatro. Gorda, estranha, felliniana. Abre a porta.) - Desculpe, senhor CAZALE, por acaso o senhor viu uma carteirinha de couro amarelo por aí?

CAZALE - Já disse ao Whitaker que aqui não tem nada.

MULHER (Meio sem jeito) - O senhor dá licença? (Levanta a outra almofada do sofá em que CAZALE está sentado. Não encontra o que procura.) Será que não está embaixo dessa? O senhor podia dar licença, um instantinho? (CAZALE semiergue o corpo, rosnando, ele próprio encontra a certeira amarela.) Muito obrigada, muito obrigada. Desculpem. (Sai, fechando a porta. CAZALE se levanta num salto, fecha a porta a chave. MARÍLIA ri da cena.)

CAZALE (Bebe água. Respira profundamente.) - Que saco! (MARÍLIA ri.) E você ainda acha graça. (Longa pausa.) Olha, MARÍLIA, não estou te cantando, não estou te pedindo nada. Seria ridículo a esta altura da vida. Vai pra onde você quiser, quando bem entender. Até pro Brasil. Mas, olha, você não vai lá há séculos. Vou te dizer uma coisa - esse teu país não é mais flor que se cheire. Reserva de índios e de corruptos. Por que não fica na Itália?

MARÍLIA - A Itália perde em índios, mas ganha em corruptos.

CAZALE - Os índios não nos fazem falta e os corruptos estão todos indo pra cadeia.

MARÍLIA - Haja cadeia!

CAZALE (Longa pausa.) - Bom, eis tudo dito. (CAZALE tira um CD do bolso. Acena com ele para MARÍLIA.) Ouve isto. (Coloca no aparelho.) Quer ouvir? (MARÍLIA faz gesto de indiferença. Não sabe o que é. CAZALE aperta um botão. Ouve-se durante algum tempo Leon Fleisher interpretando "Diversions for Piano and Orchestra", de Britten. CAZALE desliga, tira o CD.) Que tal?

MARÍLIA - Tecnicamente impecável. É Fleisher?

CAZALE - (Põe o CD no bolso do casaco dela.) - É seu. A última gravação de Fleisher, 12 de abril de 1993. Saiu ontem, pra ser mais exato. Ouve com calma. Fleisher perdeu o controle da mão direita no pico da carreira, em 64. Agora, aos 67 anos, como vê, como ouviu, está melhor do que nunca. Não sou eu quem diz, é a crítica. Domina todo o repertório para a mão esquerda. (Desdobra um recorte do "Time".) Veja isso: "Mr. Fleisher mergulha na angústia do Concerto em Ré Maior, de Ravel, com interpretação poderosa, indo à profundidade do seu incomparável talento. E nos dá uma res-plen-den-te performance de Diversões para piano e orquestra, de Britten." Isto saiu no "Time". Você acredita no "Time"?

MARÍLIA - (Longo tempo.) Não. E eu não sou Fleisher. Eu vou voltar.

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