Índice geral Ilustrissima
Ilustrissima
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Guerra é guerra!

Arqueólogos escavam as origens dos conflitos armados

RESUMO Livros investigam a presença da guerra nas sociedades humanas, mobilizando diferentes áreas do conhecimento para demonstrar suas bases históricas, sociais, filosóficas e psicológicas. Arqueólogos estabelecem nexo entre desenvolvimento do Estado e conflitos armados, do mundo arcaico a nossos dias.

RICARDO BONALUME NETO

Somália, Iraque, Afeganistão, Libéria, Líbia, Haiti, Colômbia, Gaza, favelas brasileiras. As "guerras" e fenômenos assemelhados parecem estar em toda parte, menos na academia. Guerra, nas universidades e instituições de pesquisa da área de humanidades, é uma "aberração", um "enigma", uma "construção" ou "invenção" humana; resumindo, um assunto politicamente incorreto.

Procure um curso sobre o tema. Será mais fácil achar um sobre "estudos da paz" ou sobre "resolução de conflitos". Mas o pêndulo está voltando nas áreas de história, arqueologia e relações internacionais. Lentamente. E, óbvio, sobretudo fora do Brasil.

Não que a guerra ou a violência tenham deixado de ser lamentáveis. Os pesquisadores só estão notando cada vez mais seu papel fundamental no desenvolvimento histórico da sociedade e do Estado.

"Dulce et decorum est pro patria mori" -é doce e honrado morrer pela pátria, dizia o poeta romano Horácio. No mundo pós-Iluminismo, a frase soa detestável. Mas Horácio (Quintus Horatius Flaccus, 65 a.C. - 8 d.C.) apenas expressava algo que os romanos de fato sentiam. E praticavam, como mostra o tamanho do império que conquistaram na ponta do gládio.

Foi com o Iluminismo que as sociedades liberais e afluentes passaram a ver a guerra não como algo heroico ou glorioso, mas repugnante e fútil, diz o historiador israelense Azar Gat, autor de um dos mais relevantes livros recentes sobre o fenômeno, "War in Human Civilization", [Oxford University Press, 848 págs., R$ 96] .

Gat fez uma síntese enciclopédica, juntando áreas do conhecimento que não costumam conversar entre si -biologia e teoria da evolução, sociologia, história, arqueologia, ciência política- para tentar entender por que os seres humanos vivem se matando.

Algumas descobertas podem parecer surpreendentes. Países democráticos e ricos não entram em guerra entre si, lembra Gat. Os EUA podem invadir o Iraque; a ideia de que ataquem o Canadá ou a Bélgica não faz o menor sentido, assim como nem passa pela cabeça dos líderes da Alemanha democrática e rica de hoje atacarem de novo a França ou a Polônia. Ninguém estranha quando uma ditadura africana invade seu vizinho ou massacra parte da população.

Mesmo as intervenções americanas geram enorme contestação interna, como foi o caso da Guerra do Vietnã nos anos 1960. Não por acaso, o auge do que Gat chama de "rousseauísmo" -a ideia de que o conflito intraespecífico, entre seres de uma mesma espécie biológica, seria algo apenas humano, e mesmo assim inventado culturalmente, nem um pouco biológico.

"Governo, militares, empresas, religião e família deformavam o indivíduo naturalmente propenso a 'faça a paz, não faça a guerra', 'dê uma chance à paz', acreditavam o novos rousseauístas" dos anos 1960, diz o historiador militar Victor Davis Hanson, especialista em estudos clássicos, em seu novo livro, "The Father of Us All - War and History, Ancient and Modern" [Bloomsbury Press, 272 págs., R$ 36] , coletânea de ensaios sobre história militar. "O Pai de Todos Nós" do título é como o grego Heráclito de Éfeso (540 a.C.-470 a.C.) definia a "guerra".

Para Hanson, é curioso que seus colegas na universidade pensem que ele teria um prazer "perverso" no estudo da carnificina e do sofrimento -"como se o oncologista de certo modo tivesse uma estranha atração por tumores cancerígenos, ou se o vulcanólogo perversamente tivesse prazer nos efeitos destrutivos do magma".

"Na realidade, não há nada de especial sobre a violência mortal humana e a guerra. Fundamentalmente, a solução para o 'enigma da guerra' é que tal enigma não existe. A competição violenta, o conflito -incluindo conflito intraespecífico- é a norma na natureza", escreveu Gat em sua obra "síntese", um catatau com mais de 800 páginas, 100 das quais de notas bibliográficas.

ROUSSEAU O filósofo franco-suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-78) acreditava que o homem era essencialmente "bom" quando vivia em "estado de natureza", antes da criação do Estado e da propriedade privada. Ele criticava seu antecessor britânico Thomas Hobbes (1588-1679), que defendia uma visão oposta. Para Hobbes, o homem era o lobo do homem, e só graças ao Estado essa anarquia, essa luta de todos contra todos, poderia cessar.

O israelense mostra que a razão está com Hobbes. Não só em termos de teoria; a prática, o cotidiano, tem mostrado que o autor do "Leviatã" era mais realista. Um exemplo rápido: o grande problema da Somália, do Haiti ou dos morros cariocas não é o excesso de Estado, e sim a ausência do "Leviatã". Um Leviatã, um Estado de verdade, não terceiriza o monopólio da violência legítima.

Gat insiste: "Ao contrário da imaginação rousseauísta, as evidências de caçadores-coletores historicamente observados e, mais vagamente, mas cada vez mais, as da paleoarqueologia, mostram que os humanos têm lutado entre si através da história da nossa espécie e gênero, durante o 'estado evolucionário da natureza'. Não havia nada de 'ritualístico' nessa luta, nem tinha ela lugar em um ambiente de fartura e inocência, um Jardim do Éden rousseauísta".

Gat cita os ianomâmis como um dos exemplos de caçadores-coletores e praticantes de uma agricultura simples, "sem-Estado", que podem ser muito violentos. A morte de homens por meios violentos nessas sociedades "primitivas" chega a 25% da população masculina.

Poucas vezes as guerras entre Estados modernos atingiram tal índice; o que assusta ao se estudar a Primeira ou a Segunda Guerra Mundial é o número absoluto de mortes, em milhões, não o seu percentual. A França perdeu 1,4 milhão de soldados entre 1914 e 1918; mas isso representou 4,3% da população do país, ou cerca de 8,6% da população masculina.

ESTADO Que dizer da origem da guerra, do seu papel na arcaica história e pré-história? O Estado seria um subproduto da guerra? A civilização teria sido gerada pela mortandade primeva?

A prestigiada revista científica "PNAS", da Academia de Ciências dos EUA, publicou um artigo ("War and early state formation in the northern Titicaca Basin, Peru") que afirma que a guerra moldou a evolução política no Peru e na Bolívia antes da civilização incaica.

Algo parecido tinha acontecido no México. Dois estados arcaicos eram vizinhos na bacia do lago Titicaca: Taraco e Pukara, que conviviam como rivais desde o século 5o a.C. Os arqueólogos Charles Stanish and Abigail Levine, da Universidade da Califórnia, descobriram a pista de um antigo crime -ou melhor, de uma antiga guerra: o incêndio que devastou Taraco no primeiro século da era cristã. O incêndio era tão claro e intenso no registro arqueológico que a princípio pensou-se que fosse um lugar para derreter cobre.

Comparando a "cultura material" das duas cidades -como a cerâmica, a indústria obsidiana-, ficou evidente que o fogo foi resultado de guerra, e que, depois do evento, uma cidade prosperou e a outra definhou. Um Estado se consolidou, outro sumiu do mapa.

"Estados são sociedades nas quais um grupo de pessoas tem monopólio permanente da força sobre outros na sociedade. Essa força tem que ser suportada por um sistema econômico que permita um excedente substancial acima das necessidades da população para se reproduzir. Um requisito para a formação do Estado inclui populações densas concentradas em áreas urbanas", disse Stanish em entrevista à Folha.

Arqueólogos lidam principalmente com objetos, nem tanto com palavras. Indicações da formação de Estados, lembra Stanish, são "palácios para indivíduos, evidência de uma classe de guerreiros, povoações urbanizadas, um sistema regional ritual ou religioso que integra as elites, especialistas em artesanato em tempo integral".

RAIDES A ideia de guerra "ritual" tende a desaparecer; quando muito, "raides", incursões, podem ser rituais, com muito grito e pouca morte. "A guerra, em contraste, é um 'raide' organizado por uma classe de líderes, guerreiros, para objetivos de longo prazo, políticos assim como econômicos, por exemplo a 'Ilíada'", diz Stanish.

"As estratégias gêmeas de guerra e comércio emergiram como dois dos fatores-chave na construção do Estado arcaico. Da perspectiva da evolução da cooperação, a guerra e o comércio têm efeitos similares sobre as sociedades de cacicados. Eles efetivamente levam a altos níveis de cooperação em grupo para conseguir objetivos materiais e políticos", escreveram os autores na "PNAS".

"Ilíada", Guerra de Troia: trata-se de algo fundamental na história da civilização ocidental, da sua literatura, da sua "mentalidade".

Troia definhou após a guerra (que de fato aconteceu, embora não exatamente como Homero a descreve); assim como Taraco -"o lugar deixou de ser uma força política e econômica na região".

Raides aconteciam ali havia séculos; o incêndio e a guerra documentados arqueologicamente mostram que algo diferente aconteceu. O sítio arqueológico estava cheio de esqueletos masculinos entre 18 e 24 anos com fraturas típicas de morte violenta. Na região, há evidências da tradição de cortar e coletar cabeças de inimigos, incluindo gravações em pedra.

Um "soldado do tráfico" de uma favela carioca entenderia a guerra arcaica no Peru, no México, na Mesopotâmia. Ele luta por status, por acesso a fêmeas, por bens materiais. É um "guerreiro" mais próximo de um herói homérico do que um soldado moderno de uma força armada estatal com pós-graduação em "resolução de conflitos" ou "curso de guerra na montanha".

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.