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O espírito da prosa

Fragmentos de um ensaio sobre a literatura

RESUMO A série de trechos de livros que a "Ilustríssima" apresenta em primeira mão traz fragmentos do livro "O Espírito da Prosa - Uma Autobiografia", misto de memórias e ensaio em que o premiado Cristovão Tezza trata de sua relação com a escrita e com a literatura. O livro sai em junho, pela editora Record.

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CRISTOVÃO TEZZA

VOLTO AO COMEÇO.

O que me levou a escrever foi um misto de infelicidade e esperança, embora eu não soubesse disso no momento em que produzi a minha primeira frase literária: o nascimento da obra, digamos assim, para definir com pompa o que não tinha valor autônomo além de um desejo.

Comecei, de fato, copiando formas de livros. Tenho uma memória apenas fragmentária da minha infância, mas acho que meu primeiro gesto literário aconteceu em 1962, em torno dos dez anos de idade, quando eu cortava folhas tamanho ofício em quatro ou mesmo oito partes iguais e costurava com linha e agulha a breve lombada.

Em seguida, escrevia histórias que meramente copiavam seriados da fascinante televisão em branco e preto que havia sido recém-implantada na sala de casa.

Muito mais importante que as histórias, das quais não lembro nada, era a aparência do livro, a imitação gráfica de um livro "de verdade". Aquela imitação infantil representava o cruzamento de dois fascínios que estavam no centro do país que emergia com a minha geração naqueles anos transformadores. A clássica cultura letrada de uma pequena parcela da população urbana da província brasileira encontrando (e chocando-se com) a cultura oral da televisão nascente que iria em breve se universalizar.

A minha paixão pelos livros começou assim pela imitação de suas formas, antes mesmo que se criasse na minha cabeça uma ideia, por mais vaga que fosse, de literatura.

E o gosto pelos livros era também um amor pelas miniaturas; ao mesmo tempo que costurava livrinhos em branco para preenchê-los ao acaso, desde que as formas gráficas lembrassem um livro, fazia também pequenas câmaras de TV com papelão, cola e caixas de fósforos, imitando as câmeras dos dois canais de televisão inaugurados na cidade em 1960.

Se fosse possível extrair uma conclusão desses dois fatos da minha infância, além do sentimentalismo com que acabamos por revestir toda lembrança, eu diria que minha atividade artística, isto é, aquilo que criamos num impulso não solicitado pelos outros, para neles nos reconhecer, nasceu como simulacro da realidade.

Imitar a realidade, colocando-a na minha escala. Uma espécie possível de "controle da realidade". Nada mais, nada além de um brinquedo, com a diferença de que agora o brinquedo era feito por mim e envolvia a linguagem, a criação de palavras, frases e sentidos.

Minha arte, se posso dizer assim, nasceu como construção de objetos que imitavam diretamente o mundo real, que, nesse simulacro, podia ser controlado. Não quaisquer objetos, mas objetos que, por alguma razão hoje irrecuperável pela memória, se revestiam de prestígio: livros e câmaras de TV.

Não era a imaginação que me movia, mas a hipnose concreta por objetos reais. Coisas que, ainda antes de serem meios de outras coisas, essas verdadeiramente importantes, já eram em si mesmas objetos de atração que mereciam ser copiados por seu valor próprio.

Um livro, a sua costura, a textura e a cor da capa, as folhas numeradas, a sua imagem tranquila na estante; uma câmara de TV, o tripé móvel, o aparelho inteiro leve girando sobre rodinhas daqui para ali, ao comando de alguém, transferindo a realidade viva e reduzindo-a, longe, a uma milagrosa telinha em preto e branco. (Ainda sem fixá-la -naqueles anos não havia ainda videoteipe.)

REPRODUÇÃO Daí a dizer que nesse impulso de reprodução da realidade está a gênese do que se convencionou chamar realismo é um salto delirante, mas com certeza dirá muito de mim mesmo e do que de fato me atrai até hoje: as formas da realidade e os modos de percebê-la pelos caminhos exigentes da prosa.

Ou, indo um pouco além do objeto: o que num segundo momento me passou a interessar foi a investigação ficcional sobre os modos de percepção da realidade.

Ou ainda, pela via da maturidade súbita (não acredito em evolução linear, enquadrada passo a passo, para quem escreve; a evolução, ou involução, do escritor se faz sempre aos saltos), invertendo a equação: a prosa como constituição de um ponto de vista único sobre o mundo, destinado a compreendê-lo, mas sabendo de antemão de seu fracasso -o que se quer, de fato, é partilhar uma experiência, refratada em palavras, que diga aos outros onde estou.

Mas o ensaio, como gênero, não seria exatamente isso?

Sim, mas no ensaio a voz que pensa e a voz que escreve são as mesmas, têm de ser as mesmas, ou, pelo menos, vítimas permanentes da fissão entre a palavra e a realidade, querem teimosamente ser as mesmas em cada vírgula, ou caímos num relativismo vertiginoso em que ninguém está em lugar algum, o sujeito desaparece (ou desonestamente se esconde) e a linguagem fala sozinha. (Sempre temi esse descontrole.)

Na ficção, mantém-se um eixo de valor que dá sentido global ao texto e que permite a constituição deste ponto de vista único sobre o mundo que é a literatura, mas a voz que pensa (ou as vozes que pensam) nunca é a mesma que escreve. A consciência dos outros é um pressuposto absoluto do espírito da prosa, não apenas referencial, mas organicamente linguístico.

A fissão não é mais apenas entre a realidade e as palavras (uma separação de qualquer modo invencível), mas entre sujeitos. O escritor tem de saber que a voz que ele escreve em cada instante do texto não pode ser completamente a dele.

Se essa separação se apaga, morre o prosador. Na hipótese melhor, nascerá o poeta; na hipótese comum, simplesmente retiramo-nos do mundo estético e nos fundimos com a vida, como na cena de um filme fantástico em que alguém, diáfano, atravessa uma parede dando um passo tranquilo e silencioso para se fundir consigo mesmo.

CONTINGENTE Isso me leva a outro ponto. Literatura não se reduz à confissão (o que poderia se depreender da ideia de mera experiência, falar diretamente da minha realidade íntima, como se não houvesse um entulho inacreditável de intermediários agressivos entre os meus olhos e o que está diante de mim) nem à ciência (um discurso permanente e reiterável de pressuposição de verdade que defina regras e leis regulares sobre tudo que existe e acontece), embora uma coisa e outra estejam quase sempre presentes em praticamente tudo que se escreva -o impulso de falar de si mesmo e o impulso de dizer a verdade.

Literatura é um fato da cultura humana, um objeto contingente, ao sabor da história e dos valores de seu tempo. A literatura se define nesses termos passageiros, voláteis, a um tempo cumulativos e transformadores.

É difícil alguém sustentar o contrário -a ideia de uma metafísica literária, além do tempo e da história- senão como liberdade poética, metáfora, ou fazendo do próprio olhar do observador uma, agora sim, criação literária.

(Parêntese: na primeira metade do século 20 se tentou sustentar cientificamente a ideia de uma metafísica literária, derivada em grande parte do método estrutural fundado pela linguística moderna. Conquistas metodológicas à parte, pelo tirocínio com que os primeiros formalistas mergulharam no material do texto literário, o fato intransponível é que a presunção de que o conceito de sistema linguístico, ou da ciência das línguas, poderia ser impunemente transplantado para um suposto sistema literário fracassou por completo. O sistema linguístico é, fundamentalmente, um construto da ciência natural; a literatura é um reino da cultura, pagando por isso um preço que a natureza desconhece.)

Mas nossa liberdade poética gosta da ideia de uma literatura imemorial, o substituto de Deus ou a transcendência possível num mundo político de substância laica.

Mais ou menos como um conto escrito por Borges ou seus epígonos que pretendesse definir literatura. Ele pode simular uma ciência definidora do objeto literário, mas em poucos parágrafos, em nome das próprias convenções literárias, o leitor educado saberá que está no coração de uma criação literária, e não de uma historiografia científica.

E a experiência -bem, a experiência é irremediavelmente, tragicamente intransferível, a menos que se metamorfoseie em outra coisa, destacando-se para sempre do evento da vida e daquele que a viveu. Estamos condenados à nossa experiência, que não se redime. Podemos no máximo evocá-la, mas todo desejo de reprodução, esse impulso infantil, estará condenado ao fracasso.

A evocação tem de criar o seu próprio sentido, que é um novo acontecimento -é o instante presente redivivo, um evento inédito que nasce sobre as ruínas do passado. Às vezes nos esquecemos deste dado simples: o ato de escrever é um evento, não uma reprodução.

DAN BROWN Entre o público que, há 2.000, 3.000, 4.000 anos, ouvia reverentemente o bardo da tribo cantando as glórias do povo, hoje objeto impiedoso da paródia de Asterix, e o leitor moderno que ontem mesmo entrou numa livraria e saiu de lá com um romance de Dan Brown debaixo do braço, a ideia de literatura foi se moldando retrospectivamente em razão da história, das condições sociais, da figura do escritor e do leitor, do papel da palavra escrita, das relações com o poder e assim por diante.

A ideia que temos hoje de literatura, incluindo na definição as produções ficcionais poéticas ou prosaicas (e dizer mais que isso é também entrar num labirinto sem saída), foi uma construção relativamente recente da história.

A simples figura do leitor moderno diante de uma estante de uma livraria, numa prateleira intitulada "literatura nacional e estrangeira", prestes a fazer sua escolha, com uma nota de R$ 50 no bolso, é um extensa e complexa obra coletiva que envolveu, ao longo de séculos, muito mais do que um artista solitário, um herdeiro de Gutemberg e um comerciante de livros.

A própria estratificação da arte literária em seus gêneros específicos, uma preocupação classificatória permanente desde que a palavra escrita ganhou o status social que mantém até hoje, foi perdendo o caráter sagrado que parecia definir as formas da linguagem por uma determinação quase divina, o lugar do trágico, do cômico, do épico e do lírico como pilares constitutivos e eternos da condição humana, para uma classificação apenas laica de formas da linguagem que dá espaço tanto para a reedição bilíngue da "Ilíada" quanto para o último romance policial.

Transformado em produto, em simples mercadoria, o livro já há dois ou três séculos foi perdendo sua aura sagrada, agora consumida na multidão triunfante, ou, se quisermos, no coração da sociedade dos indivíduos que define a cultura e a política ocidentais.

O sistema de valores que estabelece a hierarquia literária não consegue ser garantido por nenhuma procuração divina. Indiferente à crítica que não lhe dá trégua, ou que mesmo já desistiu dele, Paulo Coelho vendeu milhões de exemplares pelo mundo afora. Ao mesmo tempo, poetas sutis e profundos, objetos do mais fino bisturi acadêmico, só sobrevivem subsidiados pelo serviço público, fechados em salas de aula ou em pesadas dissertações universitárias.

Um grande número de lobbies literários, digamos assim, estabelece, reforça, defende e luta por uma hierarquia poética e por um sistema de valores estéticos que não sejam simples função comercial, gosto popular ou modismo passageiro.

Esses lobbies (e não vai nenhum tom pejorativo na palavra, entendida no seu sentido básico de grupos de defesa de interesses estéticos, legitimamente discutidos e assimilados) garantem espaço a gêneros e obras em cadernos literários, cursos de pós-graduação, listas de obras para o vestibular, concursos de literatura, numa disputa que tenta não perder de vista o que poderíamos chamar de "especificidade literária".

Isto é, segundo essa perspectiva literária clássica, o valor estético não é um dado autoevidente; é uma dura construção da cultura ao longo do tempo histórico.

Como se não bastassem as dificuldades históricas de sempre, dentro do mesmo campo cultural -digamos, numa simplificação bruta, a elite letrada ocidental que, por meio de seus aparatos de poder ideológico, cultura e ensino, sempre se bateu para fixar referências, numa guerra política que não teve início e não terá fim -, agora temos também o advento de uma nova onda crítica radical, de perfil niilista, que contesta até mesmo a legitimidade do metro de referência.

Para boa parte dos estudos culturais atuais, empenhados em esvaziar até a última gota o sangue azul que as chamadas artes literárias ainda manteriam atavicamente em sua autoimagem, a hierarquia valorativa da literatura já seria, por si mesma, uma violência, e a referência do Ocidente como padrão universal da literatura apenas a dominação do velho imperialismo em sua forma mais insidiosa.

INTERNET Muito da importância que essa questão relativamente antiga assumiu agora vem do impacto avassalador da internet na vida cultural de milhões de pessoas nas últimas duas décadas.

A implosão das fontes de referência, a massa imensa de neoletrados que chegam à leitura e à escrita sem anteparo de alguma memória histórica, acrescidas da incapacidade estrutural dos Estados de acompanhar a velocidade da informática em qualquer área do conhecimento, disseminaram a autoridade e outorgaram a chancela do prestígio quase que rigorosamente a cada cidadão.

Antes de achar que se trata de uma tragédia cultural e que o mundo está perdido, no automatismo do lugar-comum, é preciso entender o que está acontecendo.

Mas tenho uma grande dificuldade para aceitar o alegre alargamento da relativização cultural que hoje, nas faixas estreitas que ainda mantêm contato com a memória letrada histórica, parece ser uma pedra de toque para tudo que diga respeito a valor, como se carregássemos uma culpa imemorial que deve ser purgada.

E, em nome dela, abdicássemos, por um ato de fé (porque é só nele que o relativismo cultural parece sustentar-se em última instância), abdicássemos da responsabilidade de nossas escolhas (porque todas elas são, tecnicamente, "justas").

Talvez isso me defina como um conservador, o que não temo. De qualquer forma, está em curso uma guerra de padrões de prestígio; o que, se não é nenhuma novidade na história da palavra escrita, hoje ganha variáveis que vão muito além dos bolsões letrados.

Talvez esteja ocorrendo uma passagem pouco pensada entre uma categoria de natureza essencialmente política -a universalidade da condição humana (aliás, ela também não autoevidente, mas, do ponto de vista cultural, um produto conturbado da história humana, ainda restrito ao mundo da utopia, pelo menos nos seus efeitos práticos)- para uma categoria estético-cultural que exige justamente a afirmação do indivíduo e a responsabilidade de sua escolha.

Ou, por outra, o cruzamento de uma condição política (todos somos iguais perante a lei) com uma condição cultural (levando à conclusão inaceitável de que tudo que produzimos tem o mesmo valor estético).

NATUREZA Essa moldura foi o modo que encontrei para começar a falar do que realmente quero pensar aqui, a natureza da criação literária, o que está em jogo quando escrevemos.

Assim, prossigo assumindo o risco de falar mais ou menos de mim mesmo, ou de onde pude depreender, por meio da minha experiência, específica de parte de uma geração, uma história, um tempo, que diabos afinal significa escrever.

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"Comecei, de fato, copiando formas de livros. Meu primeiro gesto literário aconteceu em 1962, quando cortava folhas de papel ofício e costurava a breve lombada"

"Na ficção, mantém-se um eixo de valor que dá sentido global ao texto e que permite a constituição deste ponto de vista único sobre o mundo que é a literatura"

"Nossa liberdade poética gosta da ideia de uma literatura imemorial, o substituto de Deus ou a transcendência possível num mundo político de substância laica"

"Entre o público que há 4.000 anos ouvia o bardo cantando glórias e o leitor que saiu da livraria com um Dan Brown debaixo do braço, a ideia da literatura foi se moldando"

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