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Inédito

O momento da descoberta

Leia trecho do Pulitzer de não ficção 2012

RESUMO A "Ilustríssima" adianta em primeira mão trechos de "A Virada - O Nascimento do Mundo Moderno", sobre a redescoberta de manuscrito de Lucrécio, que venceu o recém-anunciado Pulitzer de não ficção. O autor, que terá seu ensaio publicado em junho pela Cia. das Letras e virá ao Brasil para a Flip, falou com a Folha.

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STEPHEN GREENBLATT
tradução CAETANO W. GALINDO

UM INTERESSE legítimo, assim como uma noção de discrição, pode ter levado Poggio a pedir primeiro para ver obras pouco conhecidas de um dos maiores pais da igreja, Tertuliano. Então, quando os manuscritos foram trazidos até sua mesa, ele mergulhou, com o que deve ter parecido um entusiasmo cada vez maior, numa série de autores romanos cujas obras eram totalmente desconhecidas para ele e para qualquer um dos outros humanistas.

Embora Poggio não tenha revelado precisamente onde, ele revelou -a bem da verdade, anunciou aos quatro ventos- o que encontrou. Pois o que todos os caçadores de livros sonhavam estava realmente acontecendo.

Poggio abriu um poema épico de cerca de 14 mil versos sobre as guerras entre Roma e Cartago. Ele pode ter reconhecido o nome do autor, Sílio Itálico, embora até aquele momento nenhuma de suas obras tivesse aparecido. Político hábil e orador astuto e inescrupuloso, Sílio havia conseguido sobreviver aos reinados assassinos de Calígula, Nero e Domiciano.

Em sua aposentadoria, Plínio o Jovem escreveu com refinada ironia, ele "obliterara pelo louvável uso que fez do tempo livre a mácula que tinha criado por seus ativos esforços de dias passados".1 Agora Poggio e seus amigos poderiam se deliciar com um dos frutos de seu tempo livre.

Ele abriu outro poema longo, dessa vez de um autor, Mânlio, cujo nome o caçador de livros certamente não teria reconhecido, pois não é mencionado por nenhum autor antigo que tenha sobrevivido. Poggio viu de pronto que se tratava de uma obra erudita sobre astronomia e teria sido capaz de dizer, pelo estilo e pelas alusões do poeta, que o texto havia sido escrito bem no começo do império, durante os reinados de Augusto e Tibério.

Novos fantasmas se erguiam do passado romano. Um antigo critico literário que floresceu durante o reinado de Nero e que escreveu notas e glosas para autores clássicos; outro crítico que citava extensamente épicos perdidos que imitavam Homero; um gramático que escreveu um tratado sobre ortografia que Poggio sabia que seus amigos obcecados por latim em Florença achariam empolgante.

Um manuscrito, no entanto, foi uma descoberta cuja empolgação deve ter sido maculada, para ele, por certa melancolia: um grande fragmento de uma história do Império Romano até então desconhecida, escrita por um oficial de alto grau do Exército imperial, Amiano Marcelino.

A melancolia seria proveniente não só do fato de que os primeiros 13 dos 31 livros originais estavam faltando no manuscrito que Poggio copiou à mão -e esses livros perdidos jamais foram encontrados-, mas também do fato de que a obra foi escrita às vésperas da queda do império.

Historiador lúcido, ponderado e incomumente imparcial, Amiano parece ter pressentido o fim iminente. Sua descrição de um mundo exaurido por impostos abusivos, a ruína financeira de grandes parcelas da população e o perigoso declínio no moral do Exército evocava vividamente as condições que possibilitaram, cerca de 20 anos depois de sua morte, que os godos saqueassem Roma.

Mesmo a menor das descobertas de Poggio era muito significativa -pois qualquer coisa que aparecesse depois de tanto tempo parecia miraculosa-, mas foram todas ofuscadas, de nosso ponto de vista, ainda que não imediatamente, pela descoberta de uma obra ainda mais antiga que todas as outras que tinha encontrado. Um dos manuscritos era um longo texto escrito por volta de 50 a.C. por um poeta e filósofo chamado Tito Lucrécio Caro.

O título do texto, "De Rerum Natura" - "Da Natureza das Coisas"-, era parecidíssimo com o título da famosa enciclopédia de Rábano Mauro, "De Rerum Naturis". Mas, se a obra do monge era dura e convencional, a de Lucrécio era perigosamente radical.

Poggio quase certamente teria reconhecido o nome Lucrécio de suas leituras de Ovídio, Cícero e outras fontes antigas que tanto estudara com seus amigos humanistas, mas nem ele nem qualquer pessoa de suas relações havia encontrado mais que um ou dois retalhos de seu texto, que, até onde sabiam todos, estava perdido para sempre.2

Poggio pode não ter tido tempo, na escuridão crescente da biblioteca monástica e sob os olhares desconfiados do abade e de seu bibliotecário, de ler mais que as primeiras linhas. Porém teria visto imediatamente que os versos latinos de Lucrécio eram belíssimos. Ordenando que seu escriba fizesse uma cópia, ele correu para liberar o livro do mosteiro.

O que não fica claro é se ele tinha noção de que estava libertando um livro que com o tempo ajudaria a desmantelar seu próprio mundo. [...]

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Calar Giordano Bruno revelou ser muito mais fácil que fazer "Da Natureza das Coisas" voltar às trevas. O problema era que, depois que o poema de Lucrécio tinha reingressado no mundo, as palavras desse visionário poeta da experiência humana começaram a ressoar vigorosamente nas obras de escritores e artistas do Renascimento, muitos dos quais se consideravam cristãos devotos.

Essa ressonância -indícios de uma presença na pintura ou no romance épico- foi menos perturbadora para as autoridades do que quando surgiu nos escritos de cientistas ou filósofos. A patrulha ideológica eclesiástica quase nunca era acionada para investigar obras de arte por suas implicações heréticas.3

Mas, exatamente como a competência de Lucrécio como poeta tinha ajudado a difundir suas ideias radicais, essas ideias foram transmitidas, de formas dificílimas de controlar, por artistas que estavam direta ou indiretamente em contato com os círculos humanistas italianos: pintores como Sandro Botticelli, Piero di Cosimo e Leonardo da Vinci; poetas como Matteo Boiardo, Ludovico Ariosto e Torquato Tasso. E logo tais ideias deram as caras também longe de Florença e de Roma.

No palco londrino de meados de década de 1590, Mercúcio provocava Romeu com uma descrição fantástica da Rainha Mab:

Ela é parteira das fadas e vem

Em forma menor que da pedra

[do anel

Que está no indicador de um

[edil,

Com uma junta de pequenos

[átomos

Sobre o nariz dos que já

[adormeceram

(Romeu e Julieta, I.iv.55-59)

"[...] uma junta de pequenos átomos": Shakespeare esperava então que sua plateia popular compreendesse que Mercúcio estava conjurando comicamente um objeto inimaginavelmente pequeno. Isso por si só já é interessante, e ainda mais interessante no contexto de uma tragédia sobre o poder compulsivo do desejo num mundo cujos personagens principais conspicuamente abjuram qualquer perspectiva de uma vida após a morte:

Aqui, aqui hei de ficar

Com vermes por criados. Ah,

[aqui

Prepararei o meu descanso

[eterno

(V.iii.108-10)

Os anos de Bruno na Inglaterra não tinham sido em vão. O autor de "Romeu e Julieta" compartilhava seu interesse pelo materialismo lucreciano com Spenser, Donne, Bacon e outros. Embora Shakespeare não tivesse frequentado Oxford ou Cambridge, seu latim era bom o suficiente para ler por conta própria o poema de Lucrécio.

Fosse como fosse, ele deve ter conhecido pessoalmente John Florio, amigo de Bruno, e pode também ter discutido Lucrécio com seu colega, o dramaturgo Ben Jonson, cuja cópia assinada de "Da Natureza das Coisas" sobreviveu e hoje está na Biblioteca Houghton, na universidade Harvard.4

MONTAIGNE Shakespeare teria certamente encontrado Lucrécio num de seus livros preferidos: os "Ensaios" de Montaigne. Os "Ensaios", publicados originalmente em 1580 e traduzidos para o inglês por Florio em 1603, contêm quase cem citações diretas de "Da Natureza das Coisas". E não são só as citações: há uma profunda afinidade entre Lucrécio e Montaigne, uma afinidade que vai além de qualquer passagem em particular.

Montaigne compartilhava o desprezo de Lucrécio por uma moralidade sustentada à base de pesadelos de vida após a morte; ele se agarrava firmemente à importância de seus sentidos e aos dados do mundo material; tinha uma intensa repulsa pela autopunição ascética e a violência contra a carne; valorizava a liberdade e a satisfação internas.

Em seu confronto com o medo da morte, foi influenciado pelo estoicismo e pelo materialismo lucreciano, mas é este que se revela o guia principal, levando-o a uma celebração do prazer corpóreo.

O impessoal épico filosófico de Lucrécio não oferecia nenhuma orientação para o grandioso projeto de Montaigne, de representar as reviravoltas singulares de seu ser físico e mental: "Não sou excessivamente guloso de saladas nem de frutas, exceto de melões. Meu pai detestava qualquer tipo de molhos: gosto de todos eles. [...] Há em nós movimentos inconstantes e desconhecidos. Pois a raiz-forte, por exemplo, primeiro a achei agradável, depois enjoativa, agora, novamente agradável"."5

Mas essa tentativa sublimemente excêntrica de se colocar por inteiro no texto se constrói sobre a visão do cosmos material que Poggio fez despertar em 1417.

"O mundo não passa de um perene balanço", Montaigne escreveu em "Sobre o arrependimento": "todas as coisas se movimentam incessantemente, a Terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito; tanto com o movimento geral como com o seu. A própria constância não é outra coisa além de um movimento mais lânguido."

E os humanos, por mais que possam achar que escolhem se querem se mover ou ficar imóveis, não são uma exceção: "Nossa prática comum", reflete Montaigne num ensaio sobre "A inconstância de nossas ações", "é seguir as inclinações de nosso apetite, à esquerda, à direita, morro acima e morro abaixo, conforme nos carregue o vento das circunstâncias".

Como se essa forma de colocar as coisas ainda desse muito controle aos humanos, ele enfatiza na sequência, com uma citação de Lucrécio, a natureza totalmente fortuita das viradas humanas: "Não vamos, somos levados: como as coisas que flutuam, ora suavemente, ora com violência, dependendo se a água está revolta ou serena: 'Então não vemos/ que ninguém sabe o que quer, e que procuramos sem cessar,/ mudamos de lugar, como se pudéssemos assim descarregar o fardo?'"

E a volátil vida intelectual de que participam seus ensaios não é diferente. "De um assunto fazemos mil: e multiplicando e subdividindo caímos na infinidade dos átomos de Epicuro". Melhor que qualquer um -inclusive o próprio Lucrécio-, Montaigne articula a sensação interna de se pensar, escrever e viver num universo epicurista.

Ao fazê-lo, Montaigne descobriu que tinha de abandonar completamente um dos sonhos mais preciosos de Lucrécio: o sonho de observar um naufrágio com a tranquilidade e segurança de estar em terra firme. Não havia, ele compreendeu, despenhadeiro estável em que se pudesse ficar; ele já havia embarcado no navio.

Montaigne compartilhava plenamente o ceticismo epicurista de Lucrécio a respeito da incessante luta por fama, poder e riqueza, e dava muito valor a sua própria retirada do mundo para se recolher à privacidade de seu escritório forrado de livros na torre de seu château.

Mas a retirada parece apenas ter intensificado sua consciência do movimento perpétuo, da instabilidade das formas, da pluralidade dos mundos, das viradas fortuitas a que ele próprio estava tão sujeito quanto qualquer outro.

O temperamento cético de Montaigne o afastou da certeza dogmática do epicurismo. Mas sua imersão em "Da Natureza das Coisas", em seu estilo assim como em suas ideias, o ajudou a explicar sua própria experiência da vida real e a descrevê-la, junto com os frutos de sua leitura e de sua reflexão, com a maior fidelidade possível.

Ela o ajudou a articular sua rejeição do medo religioso, sua concentração no mundo e não na vida após a morte, seu desprezo pelo fanatismo, seu fascínio pelas sociedades supostamente primitivas, sua admiração pelo simples e pelo natural, seu ódio à crueldade, sua profunda compreensão dos humanos como animais e sua empatia correspondentemente profunda com outras espécies de animais.

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"Poggio pode não ter tido tempo de ler mais que as primeiras linhas. Porém teria visto imediatamente que os versos latinos de Lucrécio eram belíssimos"

"Depois que o poema de Lucrécio tinha reingressado no mundo, suas palavras começaram a ressoar nas obras de escritores e artistas do Renascimento"

"Embora Shakespeare não tivesse frequentado Oxford ou Cambridge, seu latim era bom o suficiente para ler por conta própria o poema de Lucrécio"

"Há uma profunda afinidade entre Lucrécio e Montaigne. Montaigne compartilhava o desprezo de Lucrécio por uma moralidade à base de pesadelos de vida após a morte"

Notas
1. Plínio, o Jovem, Lettere, 3.7.
2. Os humanistas devem ter encontrado sinais obscuros da permanência do poema. Macróbrio, no século 5 da Era Cristã, cita alguns versus em suas "Saturnais" -ver "Lucretius and His Influence", de George Hadzsits (Nova York: Longmans, Green & Co., 1935)-, assim como a enciclopédica "Etymologiae" de Isidoro de Sevilha, do início do século 7. Outros momentos nos quais a obra vem à tona serão mencionados mais adiante, mas dificilmente, no início do século 15, alguém poderia acreditar que o poema seria encontrado na íntegra.
3. Uma célebre exceção foi a investigação inquisitorial de Paolo Veronese por seu retrato de 1573 da Última Ceia, cuja intensa materialidade -o burburinho da vida, a comida na mesa, cachorros em busca de sobras etc.- provocou acusações de irreverência e até de heresia. Veronese contornou essas consequências desagradáveis rebatizando a obra como Banquete na casa de Levi.
4. Jonson escreveu seu nome na página de rosto e, apesar do tamanho diminuto do livro -11 x 6 cm -, fez diversas anotações nas margens. Ele parece ter ficado especialmente impressionado com uma passagem, no livro 2, na qual Lucrécio nega que os deuses tenham interesse no comportamento dos mortais. No pé da página, arriscou a tradução de dois versos: "Imunes a medos e perigos, abençoadas potências,/Ricos de muitos bens, dos nossos não têm consciência." Cf. 2:649-50: "Nam privati dolori omni, privata periclis,/Ipsa suis pollens opibus, nil indiga nostri".
5. "The Complete Essays of Montaigne", trad.Donald M. Frame (Stanford: Stanford University Press, 1957), pág. 846, 240.

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