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O príncipe valente

Tó Araújo leva o Teatro da Vertigem para o Bom Retiro

RESUMO Há 30 anos, o mineiro Antônio Araújo desembarcou a contragosto em São Paulo. Formou currículo sem igual entre diretores brasileiros e, graças a uma personalidade obcecada, "que se alimenta de crises", como diz um colaborador, deu projeção internacional a seu Teatro da Vertigem, que estreia peça no próximo mês.

GUSTAVO FIORATTI

HÁ ALGO DE contraditório na falta de confiança que Antônio Araújo sente na direção -de carros, não de peças teatrais. Ele se diz inseguro atrás de um volante e conta que faz sempre os mesmo trajetos: de sua casa, no bairro da Consolação, para a Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, onde dá aulas; da USP para a sede de sua companhia, o Teatro da Vertigem, no Bexiga; do Bexiga para o Bom Retiro, onde o grupo estreia um novo espetáculo no próximo mês.

O caos no trânsito paulistano o assusta, e por isso ele só tirou sua habilitação em 2007, aos 41, depois de 25 anos morando na capital paulista, onde chegou aos 15. Até então, era um tímido filho de professores do ensino médio em Uberaba (MG), conhecido como Toninho; frequentava a igreja e escondia na casa da avó uma série de livros que os pais consideravam inapropriados para os 11 anos que tinha na época -"Anna Karenina", de Tolstói, incluído.

Entre o menino Toninho e o encenador Tó, como o chamam hoje amigos e colegas de trabalho, houve uma espécie de batismo não religioso. Incentivado pelos pais e um tanto contrariado, mudou-se para São Paulo. Chegou de ônibus à antiga rodoviária, no centro da cidade. Morou em pensões para rapazes. O medo que o acometeu no começo logo cedeu lugar a uma "sensação de grande liberdade".

Tó passou a frequentar o circuito teatral, admirou-se com peças de Gerald Thomas, Zé Celso e Antunes Filho, formou-se em teatro na USP e fundou, em 1991, um grupo de espírito desbravador. "O Vertigem assumiu riscos extraordinários", diz a crítica Silvana Garcia, sobre a "ousadia" de encenar espetáculos fora do palco italiano, em prisões, igrejas e hospitais, não necessariamente desativados.

BARCO A peça "BR-3" (2008), por exemplo, navegava sobre uma barcaça de dois andares, no rio Tietê. A nova montagem, "Bom Retiro 958 m", ocupará um shopping, ruas ermas e um prédio abandonado na região da Luz. Caótica como outros espetáculos do Vertigem, a peça foca o que está à margem da civilização, pessoas, coisas e lugares esquecidos, a degradação.

Para Silvana, não foi só a proposta de estabelecer um diálogo entre teatro e espaço urbano que fez de Tó um pioneiro. "Ele firmou um tipo de teatro colaborativo que se disseminou. Se propôs a trabalhar não como diretor, mas como membro da companhia, abrindo a criação aos participantes."

Aí reside outra contradição. Como dirigir sem estar no comando? "Embora diga que não, ele acaba sendo o líder", diz o iluminador Guilherme Bonfanti. "O grupo se guia muito pelo que o Tó diz", conclui. Matheus Nachtergaele, que iniciou a carreira como ator em "Paraíso Perdido" (1992), peça dirigida por Tó numa igreja, o define como um "príncipe obcecado".

Após quatro encontros com Tó, duas conversas por telefone e a permissão para assistir a dois ensaios, entendo o que "príncipe" quer dizer -um espírito diplomático e conciliador, aberto a opiniões.

No último encontro, com o espetáculo quase pronto, Tó me pediu considerações sobre o ensaio. Mais tarde, por e-mail, apontei cenas que me arrastaram para a sensação de estar num pesadelo, algo que o Vertigem sabe fazer. Contei ainda que não havia gostado da cena final (a dramaturgia, também colaborativa, é assinada pelo escritor Joca Reiners Terron) porque texto e imagem me pareceram redundantes: duas atrizes, interpretando manequins quebradas, falavam sobre o "destino das coisas".

"Saber os pontos frágeis é o mais importante agora. Como ainda temos algum tempo até a estreia, é possível melhorar", respondeu ele, na quarta passada, convidando-me a voltar a ver a peça em cartaz, "mais amadurecida".

O termo "obcecado" resume a busca pelo aperfeiçoamento, o poder de persuasão e também a insistência em levar adiante missões que, muitas vezes, parecem impossíveis. "Algo à beira da loucura", define Silvana.

DOUTORADO Com esse perfil, Tó formou currículo sem igual entre diretores brasileiros: fez mestrado em teatro (2002) e doutorado em artes (2008), ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Desde 1998, além de dirigir o Vertigem, é professor do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.

Em 2009, deu aulas como professor visitante na Universidade de Giessen (Alemanha), no Centro de Especialización Teatral (La Paz) e na Association de Recherche des Traditions de l'Acteur, em Paris. Também ministrou disciplinas de mestrado na Universidade Paris 8 e na Universidade de Amsterdã.

No ano passado, quando "BR-3" foi eleito na Quadrienal de Praga o melhor espetáculo em cinco anos, o Vertigem ganhou status como grupo de projeção internacional.

"Príncipe obcecado" não era uma expressão que ele tivesse ouvido antes. Mas, durante um café na rua Augusta, tomando um cappuccino acompanhado por um generoso pedaço de bolo de chocolate, Tó reconheceu nela ao menos um traço de sua personalidade.

"Sou monotemático quando decido onde aplicar minha energia. Mas a teimosia tem seu preço." A voz mansa, levemente anasalada, não se altera, e ele não gesticula. Os olhos azuis vão fundo, concentrados, como os de um professor em sala de aula.

O preço a que se refere foi pago entre 2008 e 2010, por todos os integrantes do Teatro da Vertigem, dos quais poucos ganham mais de R$ 2.000 por mês: uma dívida de cerca de R$ 300 mil, assumida para a produção do espetáculo "BR-3", dá a medida dos problemas que podem decorrer de uma personalidade afeita a projetos grandiosos.

A maior armadilha foi o aluguel do barco-cenário, que triplicou depois que a peça entrou em cartaz. A temporada foi interrompida e Tó continuou tentando levantar recursos. Enquanto buscava patrocínio, as dívidas do aluguel de equipamentos também se acumularam. "Além da crise artística, e como se não bastasse termos de interromper uma temporada que já seria curta, passamos meses dando cursos para pagar a dívida."

Por ter sido encenado num trecho do Tietê, o espetáculo exigia ainda uma articulação burocrática atípica para um processo de criação artística. "Em 'BR-3', descobri que, para usar o pilar de uma ponte do Tietê, é preciso a ter autorização de vários órgãos públicos: abaixo da ponte, é uma secretaria; sobre a ponte, é outra", conta.

Essa burocracia acompanhou o Vertigem desde o começo: o grupo nunca trabalhou num teatro convencional, e lidar com a administração de presídios, hospitais e igrejas virou algo corriqueiro. "Temos que fazer o administrador do hospital [caso de 'O Livro de Jó'] entender o que queremos ali. Alguns acham que queremos o auditório do hospital. Depois de explicar que o auditório é o único lugar que NÃO queremos, precisamos fazer com que concordem."

As resistências já levaram a cancelamentos, como quando foram convidados a apresentar "O Livro de Jó" no festival de Edimburgo. A organização pagava toda a viagem, mas não houve hospital que aceitasse a ideia.

ATRITOS O número de artistas envolvidos e o processo de criação em si (que se alimenta de depoimentos e da colaboração dos integrantes) não raro geram atritos. "Tó não é só alguém que sabe gerenciar crises. É um diretor que parece se alimentar da crise", diz o escritor Bernardo Carvalho, que participou do processo de elaboração da dramaturgia de "BR-3". "Uma das melhores apresentações de 'BR-3' foi um ensaio aberto em que deu tudo errado: chovia forte, e os atores pareciam lutar contra eles mesmos, contra a parafernália que usavam, o equipamento de som, os microfones, os holofotes de luz, que apagavam."

O escritor diz que a princípio resistiu à ideia de se envolver em um processo colaborativo, cuja metodologia incluiu viagens a regiões pobres e cerimônias do Santo Daime. Diante da insistência de Tó, acabou topando. "A certa altura, senti que o grupo havia se voltado contra mim. Eles me odiavam, queriam interferir na dramaturgia, e eu não cedia em alguns pontos. Uma das atrizes deixou o projeto por minha causa. Não fosse o tom conciliador dele, eu não teria ficado", diz Carvalho.

Dentro do sistema de criação, as crises derivam principalmente de embates de opinião entre os participantes. Todos são coautores. Todos propõem cenas, com base em um norte estabelecido pelo dramaturgo ou pelo encenador, a partir de percepções sobre uma realidade específica. Isso explica por que o diretor, onde quer que vá, está sempre com um caderninho. "A imagem que tenho do Tó é ele fazendo anotações", diz Bonfanti.

Para criar "Bom Retiro 958 m", foram feitos seminários sobre os moradores do bairro na sede da companhia, no Bexiga.

Depois, os integrantes elaboraram uma metodologia de criação que incluiu as chamadas "derivas", caminhadas pelas ruas da região.

Cada ator, diz Tó, "experimentou" o bairro, por meio de passeios sempre solitários, realizados inclusive durante as madrugadas. "Após as 23h, o bairro fica bem vazio. Mas não senti medo. Claro que você chega em alguns lugares ermos e pensa 'ai, meu Deus'. Mas não houve situação de risco com ninguém do grupo."

O diretor descreve o Bom Retiro como um lugar marcado por movimentação intensa entre 8h e 19h, por conta do comércio; e escuro, embora "ainda vivo", à noite, com gatos pulando muros, ratos por todo lugar, pedestres de passos apertados, caminhões de lixo cujo motor ecoa no silêncio. "Você tem a impressão de que o Bom Retiro é um lugar que existe só durante o dia, e que à noite é um bairro morto. Isso é equivocado", reitera.

A maior parte dessa pesquisa de campo funciona apenas como gatilho para a criação, diz o diretor. "Uma pequena parte é efetivamente incorporada à cena, mas as descobertas ficam com você. Como ator, como diretor, você não sai impune." A experiência, conclui ele, é algo que contamina.

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