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Ar de Dylan

SOBRE O TEXTO A "Ilustríssima" apresenta em primeira mão a tradução, por José Rubens Siqueira, do mais recente livro do catalão Enrique Vila-Matas, "Ar de Dylan" (Cosac Naify, 320 págs., R$ 59). Previsto para o final de junho -o autor estará na Flip, em julho-, o romance tem o nome inspirado na obra "Ar de Paris", de Marcel Duchamp. O título do livro se refere a um personagem que lembra Bob Dylan.

ENRIQUE VILA-MATAS

TRADUÇÃO JOSÉ RUBENS SIQUEIRA

DISPONHO De informação, digamos, confidencial sobre uma noite que me parece a mais terna de que já tive notícia. E digamos também que acabo de escrever esta frase porque nos momentos de desânimo como este não há nada de que eu mais goste de insinuar do que a presença da ternura numa noite sobre a qual me contaram o suficiente para que possa agora reconstruí-la, contá-la a partir do meu próprio Hades, esse reino dos mortos particular que existe em cada um de nós.

Embora sem a mesma intensidade com a qual Lancastre misturava vozes e recordações, tentarei me aproximar, a partir de meu reino também povoado de sombra, do tom e do clima que Vilnius foi criando quando quis me comunicar a complexidade da trama sonâmbula daquelas horas.

Noite que começou sua marcha quando, ao sair da Bernat, resolveram não ir à Filmoteca, porque a tensão de seu "Teatro da Ratoeira" os tinha deixado com a necessidade de comentar o ocorrido e as consequências que aquilo podia gerar. Na saída da Bernat, ligeiramente assustados pelo que tinham feito, optaram por se refugiar no quarto de hotel dele. Bastava atravessar a rua, ir da Bernat ao Littré, para escapar do mundo.

Além disso, o argumento de "Suave É a Noite", o filme que iriam projetar na Filmoteca, era muito perigosamente parecido com a história de amor de Débora com o pai de Vilnius.

No saguão do Littré, encontraram um Shekhar mais disposto do que nunca a conversar. Mas Débora e Vilnius estavam com pressa. Queriam se retirar o quanto antes para o quarto. O hindu, implacável, começou a detê-los dizendo que lhe atazanava uma incômoda melancolia. Seu relógio de pulso tinha parado, dizia, e teria de esperar até o dia seguinte para trocar a bateria na Tempus Fugit, a relojoaria da rua Villarroel, a quatro passos do Littré. Nunca em sua vida, dizia Shekhar, seu relógio tinha parado, e queria transformar esse raro acontecimento em objeto de reflexão séria.

-Não, por favor! Reflexão séria! Somos artistas jovens, não deve nos maltratar- Débora implorou.

Era a primeira vez que Vilnius ouvia Débora falar de artistas jovens. E gostou muito daquilo. Não era, de fato, o que os dois eram? Para dizer a verdade, eram também artistas do desânimo, sem esquecer que eram, além disso, jovens com ligeiros e sempre passageiros problemas mentais. Problemas que se faziam presentes tanto nele como nela, na forma de rajadas.

Em Débora eram crises nervosas agudas e breves que vinham nos momentos mais imprevistos. Em Vilnius, infiltrações mentais paternas já declinantes, mas que vinham acontecendo desde que iniciara o período de luto. Mas sabiam exprimir criativamente esses problemas e inclusive viver deles, das pegadas interessantes que deixavam às vezes em suas mentes.

Além de jovens artistas da indolência, talvez fossem também, ou tivessem começado a ser, uma espécie de sociedade incipiente. Uma sociedade artística de dois, mas que não seria de estranhar se abrisse caminhos e não tardasse a crescer. Lembravam vagamente Marcel Duchamp, que ao longo da vida não fez muitas coisas, mas de vez em quando fez alguma. Em certa ocasião, construiu uma gota de cristal com ar de Paris e deu de presente a uns amigos de Nova York.

Ar de Paris, ele a intitulou.

"Como meus amigos tinham praticamente tudo, levei para eles 50 centímetros cúbicos de ar de Paris", Duchamp comentaria anos depois.

Vilnius e Débora tinham começado a ser uma sociedade que não se dedicava a nada de concreto, talvez porque desejasse evitar qualquer possibilidade de fracasso e talvez porque, além disso, fosse uma sociedade que se sentia atraída pelo infraleve, por todas aquelas coisas -pensemos num sabão que escorrega, por exemplo- que são, por um lado, tão indeterminadas e, por outro, tão específicas; são tudo ao mesmo tempo, como a própria vida.

Para eles, infraleve era o roçar de calças ao caminhar, um desenho a vapor de água, um bafejo no vidro da janela.

Enquanto Shekhar tentava refletir sobre os desproporcionais tragédia e mistério de seu relógio parado, Vilnius achou que Débora e ele, depois da passagem pela Bernat, não só podiam começar a se considerar uma sociedade infraleve, mas também que, em homenagem a Duchamp, essa sociedade podia se chamar Ar de Dylan, o que permitiria a ambos imaginar a si mesmos como uma gota de cristal que conteria a essência de sua época, o ar de seu tempo, do nosso, de um tempo ligado em arte ao mundo de Bob Dylan, criador esquivo e homem de tantos personagens e personalidades.

Nos dias seguintes, não faltariam aqueles que lhes perguntariam seguramente se de fato não faziam nada e se passavam o dia de braços cruzados. Quando perguntassem, eles responderiam em plano infraleve, como Duchamp: "Mais que voulez-vous?, je n'ai plus d'idées" (O que vocês querem? Não tenho mais ideias). Só que eles responderiam no plural e com energia própria:

-E o que você quer que a gente diga? Não temos ideias.

-Nenhuma?

-Ah, monsieur! Temos uma por dia. O suficiente para nós, que somos infraleves, ar do tempo, leve imensa paixão, ar de Dylan.

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