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Crítica

Sobre aves e escritores

Retrato do romancista Franzen como ensaísta

RESUMO Escritor britânico analisa produção ensaística de Jonathan Franzen, que lança coletânea de não ficção em inglês (alguns textos estão em edição recém-lançada no Brasil). Escritos sobre temas díspares, os ensaios têm em comum o desejo de preservar seus objetos de interesse -sejam autores ou pássaros em extinção.

GEOFF DYER

TRADUÇÃO CLARA ALLAIN

OUVI FALAR que o ensaio que dá título à edição em inglês da nova coletânea de Jonathan Franzen, "Farther Away" (bem longe), era sobre suas árduas experiências numa pequena e inóspita ilha. Parte do que aconteceu naquele lugar é de conhecimento público. Os habitantes o receberam publicando uma versão errada de seu romance "Liberdade", o que tornou necessário destruir toda a primeira tiragem do livro.

Na festa de lançamento, marcada pela ausência do livro, um penetra arrancou os óculos do rosto de Franzen, saiu correndo noite afora e exigiu como resgate alguns milhares de libras esterlinas. (Parece que, sem óculos, Franzen é praticamente cego -talvez por ter sujeitado seus olhos a cada página de "The Recognitions" [os reconhecimentos], de William Gaddis, e mais ou menos metade de outro romance do autor, "JR".)

Quando o avião decolou do aeroporto londrino de Heathrow, Franzen deve ter dado um suspiro de alívio e pensado que só voltaria àquele lugar inclemente no dia de São Nunca. Por isso, admirei a coragem que foi necessária para revisitar, em texto, o lugar onde sofreu todos aqueles traumas.

Só que, descobrimos, o ensaio é sobre outro lugar, menos agressivo: Más Afuera, a ilha do Pacífico Sul em que Alexander Selkirk (o homem que inspirou a criação de Robinson Crusoé) naufragou.

Franzen se isolou ali depois de passar meses divulgando seu livro -munido de uma barraca, um exemplar do livro de Defoe e parte das cinzas de seu amigo David Foster Wallace (1962-2008). Uma vez instalado -entenda-se por instalado que ele mal conseguiu armar sua barraca-, Franzen reflete sobre o absurdo da empreitada ("nunca senti tanta saudade de casa desde, possivelmente, a última vez que tinha acampado"), a ascensão do romance na época de Defoe e sua "amizade de comparar, contrastar e (de modo fraterno) competir" com Wallace.

Um ensaio admirável de sua coletânea anterior, "How to Be Alone" (como ficar sozinho, 2003), o mostrara "sozinho e despreparado na montanha íngreme, frígida, sem ar e mal mapeada" de "The Recognitions".

Agora, a topografia real em que ele se encontra funciona como uma espécie de mapa paralelo da condição em que Wallace -"preso em sua própria ilha existencial"- tinha acabado.

Trata-se de um magnífico ensaio e de uma delicada homenagem, mas, à medida que Franzen luta com a questão de vida e morte no ar rarefeito do esforço literário de alta altitude, algo na alma do leitor britânico começa a ceder.

TERCEIRA SAÍDA O texto principal de "How to Be Alone" é um ensaio em que Franzen lamenta, analisa e por fim por supera as dificuldades de escrever romances numa época em que todo mundo tem coisas melhores para fazer do que lê-los (ou melhor, piores).

Para um indivíduo descrito pelo pai de Joshua Cody na autobiografia de seu filho como "o cara mais reservado que já conheci", Franzen vem sendo notavelmente pouco reservado em relação à agonia de ser pregado à cruz vocacional do romance. Ele sofre para que você não precise sofrer!

No critério "sofrimento insuperável", Wallace evidentemente sofreu mais do que Franzen. E assim, "quando sua esperança na ficção morreu, depois de anos enfrentando seu novo romance, não havia outra saída a não ser a morte".

Ok... Mas não pude deixar de pensar que talvez houvesse uma terceira saída. Por exemplo, ele não poderia ter tocado a bola para a frente um pouquinho mais? E, já que estamos falando nisso, será que ninguém jamais pensou nas consequências a longo prazo -potencialmente letais- do uso de bandana para um escritor?

Estou brincando, é claro, mas, lendo esse ensaio, senti uma leve solidariedade com o idiota que sequestrou os óculos de Franzen -uma versão passageira do permanente respeito que sinto pelos iconoclastas que prenderam hambúrgueres a mini-helicópteros e os lançaram no ar, só para atormentar o ilusionista David Blaine quando ele estava fazendo seu truque de "artista da fome" alguns anos atrás, suspenso numa caixa sobre o rio Tâmisa.

Em outras partes da coletânea, Franzen parece estar mais gregário -de um jeito solitário- do que esteve em "How to Be Alone". Nesse livro, lançou um olhar saudosista sobre os tempos em que John Cheever e James Baldwin tiveram suas fotos na capa da revista "Time".

Aqui, ele tem mais a dizer sobre os prazeres -metaforicamente falando- de tocar a bola para a frente. Quase inevitavelmente, porém, acaba tocando a bola para os mesmos momentos centrais de sua vida.

Feito um tubarão atraído pelo cheiro de sangue que acaba revelando ser seu, Franzen retorna sempre ao fim de seu casamento e ao período de libertação criativa que se seguiu à separação.

RABUGENTO Certos temas sempre voltam à tona. A privacidade, por exemplo, que Franzen redefine, cuidadosamente, não como o desejo de manter oculta dos outros sua vida pessoal, mas como a necessidade de ser poupado "da intrusão da vida pessoal de outras pessoas" na sua, em especial por meio de celulares.

Essa transição da "cultura da nicotina para a cultura do celular", o modo como a "poluição atmosférica se transformou em poluição sonora", não é apenas fonte de uma irritação rabugenta.

A análise que ele faz da finalidade de haver aprimoramentos tecnológicos constantes -ocasionada, fato interessante, pela aquisição de um celular BlackBerry Bold 3G- tem a flexibilidade intelectual de um Jean Baudrillard ou um Slavoj Zizek, mas sem o blablablá europeu: "O objetivo definitivo da tecnologia [...] é substituir um mundo natural indiferente a nossos desejos [...] por um mundo que responda tão bem a nossos desejos que é como se fosse mera extensão do ser."

A noção de que as complexidades da vida do final do século 20 e do início do século 21 poderiam ser representadas dentro dos parâmetros da tradição realista da ficção é crucial para Franzen em sua fase pós-"Recognitions". O mesmo vale para seu trabalho como ensaísta e crítico ocasional.

Em "How to Be Alone" ele registrou como, depois de uma overdose de Gaddis, estava "ansioso por ler livros mais curtos e calorosos de James Purdy, Alice Munro" e Paula Fox.

Os ensaios sobre as obras deles em "How to Be Alone" garantem uma continuidade tácita aos dois volumes, rompida, no entanto, pela decisão de colocar no início o texto mais recente sobre Wallace e Crusoé. Em decorrência disso, o conteúdo é organizado em ordem cronológica inversa, de modo que terminamos onde se poderia considerar que essa fase começou, com o texto de 1998 sobre "Desesperados", de Paula Fox.

Esses ensaios são exemplares de uma crítica feita com os olhos no leitor, na medida em que merecem ser estudados até mesmo por pessoas não familiarizadas com as obras em questão. Eles também exibem dois efeitos colaterais, relacionados ao fato de Franzen ter se tornado um grande romancista.

Primeiro, a facilidade com que a ideia de Harold Bloom sobre a angústia da influência pode ser posta de lado, vista como uma divertida irrelevância. Segundo, que o grande romancista é, obviamente, um grande leitor.

Franzen não fala de Tolstói e Flaubert porque acha (imagino eu) que eles são capazes de cuidar bem de si mesmos. Prefere usar seu poder de lobista, "alguém que suplica em prol de mais um escritor insuficientemente apreciado". (No caso de Alice Munro, Franzen parece exagerar um pouco o grau em que ela é subestimada).

Não é preciso ter binóculos para enxergar a sobreposição entre esse tipo de ativismo literário e sua dedicação à observação e proteção de aves (temas dos dois ensaios mais longos do livro). Franzen está comprometido com a proteção de espécies ameaçadas, de escritores cujos livros são avistados em sebos, raramente, mas com prazer.

Há também uma sinergia mais sutil. Na China, ele fica sabendo que uma reserva natural foi criada não só para proteger espécies de aves, mas para proteger o próprio local. Esse local, para extrapolar ainda mais, pode ser mental e psicológico, além de geográfico.

De todo modo, os ensaios de "How to Be Alone" são tentativas de ampliar o lugar em que a literatura, e a abertura para ela, podem ser preservadas.

NA FLIP

O americano Jonathan Franzen fala na Tenda dos Autores na sexta (6), às 19h30. O recém-lançado "Como Ficar Sozinho" [Companhia das Letras, trad. Oscar Pilagallo, 382 págs., R$ 46], é composto por uma seleção de ensaios publicados nas coleções "How to Be Alone", de 2003, e "Farther Away", deste ano.

Texto publicado pelo jornal britânico "The Observer".

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