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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Afeto arcaico

São Paulo, 1994

JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA

ESTÁVAMOS EM 1994. Eu havia terminado de escrever "Hotel Solidão", com o qual recebera o prêmio do Concurso Nacional de Contos do Paraná.

O livro, contudo, continuava inédito. Marçal Aquino tinha publicado seu "Miss Danúbio" pela Scritta e encaminhou meu original para a editora, que o aprovou. Minha estreia, enfim, se deu, e as críticas foram positivas. Mas o que mais gostei foi o recado que recebi um dia ao voltar do trabalho: Raduan Nassar havia me ligado. E deixado seu número de telefone.

Liguei, um tanto incrédulo. Era ele mesmo! Era o Raduan Nassar, autor de "Lavoura Arcaica" e "Um Copo de Cólera", obras que eu lera anos antes -e que haveria de reler sempre. O poeta Fernando Paixão enviara a ele um exemplar do meu livro e Raduan gostara.

Convidava-me para um café, num fim de tarde, em sua casa.

Peguei o ônibus e fui. Falamos da vida, das cidades pequenas -ele, de Pindorama; eu, de Cravinhos-, das antigas lavouras de café que haviam cedido espaço a plantações de cana. Depois, falamos do meu livro.

Claro, naquela tarde, e em outras em que lá estive, aprendi muito sobre minhas virtudes e, em especial, sobre minhas limitações literárias. Se Drummond e Sabino haviam recebido, por meio de cartas, conselhos de Mário de Andrade para o aperfeiçoamento de sua escrita, eu o recebera de viva voz de um escritor cuja obra, para mim, era -e continua sendo- um exemplo de literatura maior.

De súbito, eu me tornara um bem-aventurado!

Sim, foram encontros de "formação". Mas o que aprendi com Raduan acerca do ato de escrever, mesmo que ele jamais se arvorasse em postura professoral, só serve para mim. E não foi o mais importante.

O que vale compartilhar aqui é o aprendizado da gratidão. E só há gratidão sincera se há, do outro lado, generosidade desinteressada.

Assim, descobri um tipo de vínculo que não advém das afinidades eletivas, mas das afetivas. Naquelas conversas tranquilas, por vezes divertidas, com Raduan, veio à tona em mim um afeto que, em verdade, habitava minhas profundezas desde sempre.

Um afeto arcaico -desses que nos move a lutar por causas perdidas, ou a escrever sobre a nossa irremediável condição.

Depois publiquei "O Vaso Azul", "Duas Tardes" e "Dias Raros", livros que contaram antes com a leitura crítica do Raduan, uma dádiva que nunca imaginei merecer -eu sempre pedi pouco ao mundo.

Então, envelheci. Não sou mais aquele jovem estreante, mas um escritor há tempos no caminho. E, claro, aconteceu o que costuma acontecer entre nós e algumas pessoas queridas: o sentimento é tão forte que a ausência se faz presença. Não é preciso mais estar perto para se sentir junto.

Na última vez que nos encontramos, em 2007, eu havia lançado "O Volume do Silêncio". Junto com o então editor da Cosac Naify, Augusto Massi, almocei com Raduan em sua casa e passamos a tarde conversando.

A vida estava ali, entre nós, e a gente fazendo com ela só o que se pode fazer nessa e em todas as outras horas: vivendo-a.

Meses atrás, violentando a minha timidez, telefonei para dizer a ele uma verdade simples, tão simples que a muito custo me saiu: "Estou ligando só pra dizer que gosto muito de você". O que mais se pode dizer nessas ocasiões?

Sei que, com este texto, fujo de seus ensinamentos, sobretudo porque sempre fui fiel ao nosso silêncio. Mas, valendo-me das palavras de um de seus personagens, acho mesmo que só deve usar a razão quem nela incorpora suas paixões. Às vezes, para declararmos nosso afeto, temos de desrespeitar os mais velhos.

NA FLIP

O escritor João Anzanello Carrascoza participa de mesa no sábado (7), às 15h, na Tenda dos Autores, ao lado de Zuenir Ventura e Dulce Maria Cardoso, com mediação de João Cezar de Castro Rocha.

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