Índice geral Ilustrissima
Ilustrissima
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Entrevista

O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.

A caixa de Pandora

'Graças à culpa, a vagina cria dentes'

PAULO WERNECK

RESUMO
Após ter interrompida a transmissão de sua conferência sobre arte e sexo pelo site da Academia Brasileira de Letras, o crítico e professor Jorge Coli comenta o episódio e o contexto cultural de repressão em que ele se deu. A presidente da ABL, Ana Maria Machado, alega que não houve censura e pede debate sobre o tema.

Pintada em 1866, a tela "A Origem do Mundo", de Gustave Courbet, mostra o regaço de uma mulher nua, com as pernas abertas, exibindo sua vulva. Desde que foi divulgada publicamente, nos anos 1990, depois de décadas em coleções particulares, a tela volta e meia desperta polêmicas, sobretudo quando é reproduzida em livros ou na mídia.

Foi o que aconteceu no dia 12, quando o crítico e professor da Unicamp Jorge Coli apresentou-a conferência "O Sexo Não É Mais o que Era", no ciclo Mutações, organizado por Adauto Novaes, na Academia Brasileira de Letras. Assim que a imagem de Courbet e uma de Jeff Koons invadiram a tela, a transmissão foi interrrompida.

Algumas ideias da conferência já haviam sido desenvolvidas no artigo "Rituais litúrgicos", na "Ilustríssima", publicado em setembro de 2012, com o quadro de Courbet, sem despertar nenhum tipo de polêmica.

Coli afirma que o corte se deu quando ele pronunciou a palavra "boceta". Já Ana Maria Machado, presidente da Academia, defende a decisão, que segundo ela se deveu a uma cena de sexo oral numa obra de Jeff Koons.

Nesta entrevista, concedida por um serviço de bate-papo on-line, Coli comenta aspectos do episódio.

-

Folha - Há semanas, a "New Yorker" teve um cartum com Adão e Eva censurado no Facebook, que já removera perfis com "A Origem do Mundo". No Brasil, a transmissão de sua palestra foi interrompida. As redes sociais trazem consigo moralismo e puritanismo?
Jorge Coli - Não creio. Atravessamos um período muito conservador. Mas esse conservadorismo é exacerbado exatamente pelos novos meios de comunicação, pelas redes sociais, que permitem uma intervenção maior de cada um no campo geral das opiniões e das notícias. Os jornais impressos declinam a cada dia. O acesso às informações e às opiniões individuais aumenta.
No campo virtual, campo dos compartilhamentos virtuais, o desejo sexual tem parte imensa. A onda de conservadorismo surge como reação a essas ameaças fundamentalmente democráticas.
O Facebook tem um recurso para reconhecer nudez etc., mas isso não impede o que há de mais subversivo nessa rede social, que é a troca direta entre pessoas.

O Brasil acompanha uma onda global de conservadorismo? A França ainda consegue garantir liberdade para tratar publicamente de sexo?
Sim, o Brasil acompanha esse movimento. O episódio da minha conferência na ABL, com a censura, demonstra isso. Não creio que na França, nas mesmas circunstâncias, a situação se repetisse, porque, no caso, a reação foi muito tosca intelectualmente. Mas a França não é o paraíso do imaginário livre: houve censuras a cartazes de filmes que, no Brasil, imagino, não ocorreriam. São configurações culturais diferentes.
Li há alguns meses uma notícia que indica o sinal dos tempos. Quando vivi na França, nos anos 70, o nudismo tinha virado febre. Mesmo em praias ou piscinas nas quais não fosse praticado o nudismo, raras eram as mulheres que não se apresentavam em topless. A notícia dizia que esse hábito desapareceu, e que hoje o sutiã do maiô se impôs de modo absoluto.

Kate Middleton acaba de ser flagrada de topless justamente por uma revista francesa...
Boa demonstração de como o conservadorismo se infiltra no cotidiano.

Mas por que uma pintura de 1866 ainda choca? É o extremo realismo que ainda confunde?
A tela conduz a uma situação esquizofrênica. É a exibição do obsceno (a vulva) no campo do cênico (a arte). Em nome da arte, expõe-se a vulva. É esta a razão dos conflitos.

A questão não se limita ao campo visual: enquanto alguns sinônimos de vulva, como "babaca", já não chocam, "boceta" marcou o corte da conferência, e até "vagina" foi censurada pela Apple no título de um livro. Estamos voltando atrás?
Você tem razão. Sem nenhuma prova, estou convencido de que minha censura pela Academia ocorreu não tanto pelas imagens mostradas, mas no momento em que li um texto contendo a palavra "boceta", palavra chula e feia. É na linguagem que o peso dos interditos se revela mais facilmente.
Não foi nada fácil para mim pronunciar essa palavra em público e, antes de fazê-lo, pedi desculpas ao auditório. Esse peso que os palavrões carregam consigo foram embutidos no nosso cerne desde a infância. Todos os que aprenderam uma língua estrangeira sabem que não há dificuldade nenhuma em pronunciar os termos mais cabeludos e arrepiantes no novo idioma: "fuck", "pussy", "enculé", "cazzo", "troia".
Quando os incorporamos ao nosso vocabulário, eles nos chegam sem a carga de autocensura repressiva engendrada na infância. Entre nativos, essas palavras desencadeiam um grande mal-estar. A palavra boceta talvez seja, de todas, a mais chocante. No entanto, ao que parece, em Manaus, ela substituiu a interjeição "caralho!", que se tornou mais fraca.
Se assim for, configura-se como exemplo de que, lá, o peso da autocensura diminuiu. Ao contrário dessa impressão negativa, as palavras chulas podem servir de estímulo erótico, sobretudo durante o ato sexual, porque ampliam o sentimento de transgressão, o sentimento de prazer proibido.
Seja qual for a ressonância que uma palavra possa ter, ela não pode, nem deve, ser proibida. A censura que recai hoje sobre esses termos está vinculado à reação conservadora à que me referi.

As fronteiras entre erotismo e pornografia se diluem com essa nova realidade das imagens na internet? É preciso redefinir esses conceitos?
Não é preciso redefinir, porque eles nunca foram, de fato, definidos. São termos imprecisos e flutuantes. Pornografia é o erotismo do outro. Pornografia é um preconceito moral. Erotismo é um álibi moral. Resta o fato de que o imenso acervo pornográfico da Internet expôs, de modo envergonhado, a violência dos desejos sexuais no campo do imaginário. Ao que parece, apenas no dia 11 de setembro de 2001 o número de busca por sites sexuais foi superado pelo de informações sobre os ataques às torres de Nova York.
A universidade de Montréal publicou no seu site, em 2009, uma situação particular: queriam fazer uma pesquisa sobre o comportamento de homens de 20 anos que consomem pornografia. Para tanto, precisavam de dois grupos: os que consomem, e os que não consomem. Não conseguiram encontrar um só para o segundo.
Entre alguns resultados interessantes, está a média etária assinalando a idade em que se começa a ver pornografia: dez anos.

No seu artigo publicado pela "Ilustríssima", você observa que a importância está na cumplicidade do espectador, ora é um contemplativo extasiado, ora um voyeur canalha. Como isso se dá?
Depende do modo como o espectador dispõe aquilo que vê, e do modo como ele próprio se dispõe diante daquilo que vê. Se eleva seu objeto para o campo da arte, dignifica-se a si mesmo e ao seu objeto, como faz Kenneth Clark no seu livro sobre o nu: é o álibi do esvaziamento erótico dentro da cultura artística. Se o espectador toma o objeto como uma figuração aviltada, ele se torna pornográfico.
Assim, por exemplo, num filme de, creio, Aleksander Ford, alguns jovens se masturbam diante da "Vênus" de Giorgione, um dos mais sublimemente idealizados nus femininos. Há o caso célebre do jovem grego que se deixa fechar dentro do templo para se masturbar diante da "Vênus" de Cnido, obra que Praxíteles terminara de esculpir. Por outro lado, Jeff Koons, e tantos outros, tomam imagens obscenas para expô-las como arte: elas serão admiradas como sofisticados produtos de cultura.

Elevar a pornografia ao status de arte anula seu caráter subversivo?
Boa pergunta. Creio que é possível pensar assim: a pornografia tem um forte potencial subversivo porque abala os bons comportamentos morais. Há algo de rebelde na pornografia, algo que está continuamente presente, mas apenas de modo subterrâneo. A arte, que é uma categoria social elevada, ao incorporar a sexualidade explícita, serve-se do álibi cultural para manifestá-la. Ela funciona como um dos modos pelo qual essa visualidade consegue ser exposta.
Ao expô-la, a arte pôe em confronto público o espectador e seus fantasmas. São duas formas de subversão: uma oculta e brutal, outra manifesta e insidiosa.

Da "vagina dentada" que aparece nas mais diversas mitologias à recente onda de censura, por que a vulva permanece como uma caixa de Pandora, vista como fonte de terror e males?
Tenho para mim que a vulva atrai e assusta por causa do mistério que ela encerra. Mistério do prazer feminino, indecifrável para os homens, mistério no fato de que suas manifestações exteriores não são visíveis, como a ereção o é.
Mistério da penetração que perturba pelo desconhecido, paraíso inquietante. Esse tema foi tratado em minha palestra no ciclo precedente, organizado por Adauto Novaes, e apresentada no auditório da ABL, mas daquela vez sem nenhuma censura.
É um tema maravilhosamente alegorizado no romance de Maurice Pons "Rosa et le Bonheur des Hommes", que, por infelicidade, não saiu no Brasil. Há ali uma luta metafórica entre as amarras preconceituosas que, uma vez vencidas, permitem atingir o paraíso. Culpabilizar o prazer é um dos mais formidáveis instrumentos de dominação sobre cada um: muitas religiões se tornaram perfeitamente hábeis nisso. Graças à culpa imensa, a vagina cria dentes, a maçã é venenosa e o paraíso mantém seus portões fechados.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.