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Arquivo aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Teatro e minas no deserto

Lima, 1988

Arquivo Pessoal
Artistas durante encontro em Huampani, perto de Lima, que teve participação do grupo mineiro Galpão
Artistas durante encontro em Huampani, perto de Lima, que teve participação do grupo mineiro Galpão

EDUARDO MOREIRA

Em 1988, o Galpão fez sua primeira viagem internacional. O destino era o Peru, onde ocorreria a "Mostra de Teatro de Huampani", somente com grupos adeptos do chamado teatro antropológico.

Uma estrela do encontro era Eugenio Barba, cuja metodologia de criação se baseava nas mais diferentes tradições teatrais, especialmente as orientais. Haveria ainda uma homenagem ao polonês Jerzy Grotowski, amigo de Barba e mentor dessa corrente teatral.

A proposta era que o festival, sediado num país com dificuldades estruturais e vivendo delicado período de convulsão política e social, fosse bancado pelos participantes. Assim, além de não recebermos cachê, teríamos que arcar com as passagens e uma contribuição de US$ 100 por participante.

Na época, não se falava em leis de incentivo. Os caminhos para angariar fundos iam desde abordar as (ainda hoje) poucas empresas interessadas em cultura até correr "livros de ouro" entre os abastados ou promover eventos como a Festa do Peru, que realizamos num diretório de estudantes.

Com muita labuta e uma solidariedade infinita (há que se fazer pesquisa séria sobre a importância de amigos e parentes para a sobrevivência do teatro brasileiro), conseguimos o valor das passagens e parte da cota de participação.

Partimos para Lima. No aeroporto da capital peruana, fomos surpreendidos por um gigantesco aparato militar preparado para prevenir atentados do Sendero Luminoso, que vinha aterrorizando o Peru com guerrilhas nos campos.

Após revista acintosa em nossos pertences, fomos escoltados sem maiores explicações até a colônia de férias de Huampani, nos arredores de Lima, onde ocorreria o festival. O país parecia à beira de uma guerra civil, mas nada abalava os 34 grupos participantes.

A programação era extenuante. A atração mais importante, a homenagem a Grotowski, era uma encenação num deserto perto dali, feita por mais de 250 atores, misturados e divididos pelos diretores de todas as companhias.

Cada grupo deveria criar e apresentar uma cena de até sete minutos num platô do deserto, um depois do outro, de forma que todos vissem todos os trabalhos. O resultado foi um "espetáculo" de quase três horas, uma mera sucessão de cenas, vista só pelos participantes. Grotowski, com saúde já debilitada, acabou não aparecendo.

Bem dentro do espírito de devoção do teatro antropológico, os ensaios ocorriam das 5h às 7h, em jejum místico. No resto do dia, além de assistir a cinco ou seis peças, tínhamos aulas com Barba. Eram sempre ao ar livre, no final da manhã, no período mais causticante do sol peruano.

A homenagem a Grotowski no deserto foi avaliada localmente como um evento teatral único no mundo, só comparável talvez a uma encenação do inglês Peter Brook no deserto da Pérsia, promovida num festival durante o regime do xá Reza Pahlavi.

Ao final, percorrendo um trecho do deserto a pé até os ônibus que nos levariam de volta, fomos alertados para a necessidade apertar o passo -o local também era usado pelo Exército peruano como campo de provas de bombas e minas.

Terminado o encontro de Huampani, encenamos em Lima, Cusco e Arequipa os espetáculos "Ó Procê Vê na Ponta do Pé" e "A Comédia da Esposa Muda". Apesar dos sustos com bloqueios das Forças Armadas nas estradas, as apresentações correram bem, sempre organizadas por grupos de teatro acentuadamente esquerdistas, que esperavam a revolução e a redenção do povo peruano.

Também em Huampani quase todos os grupos peruanos apostavam na temática revolucionária, com tais padrões estéticos que parecia que estávamos em algum festival conceitual da Dinamarca. As cenas eram uma mirabolante exibição de técnicas antropológicas, cheias de metáforas pouco claras.

Ao fim de "A Comédia da Esposa Muda", o público entrou em delírio, pulando aos gritos de "Brasil!". A peça misturava farsa e "commedia dell'arte", contando as peripécias do marido que recorre a um médico para fazer calar sua esposa tagarela. A reação exacerbada se deu não porque nosso espetáculo fosse muito melhor que os demais, mas porque o público enfim era capaz de entender e desopilar o fígado de tanta seriedade.

Sobrevivemos à viagem e aprendemos muito. No ano seguinte, passamos dois meses e meio na França e na Itália. Essa outra viagem nos rendeu dois dividendos importantes. Com o faturamento das bilheterias, compramos o galpão que até hoje é a nossa sede em Belo Horizonte e começamos o salto artístico do Galpão. E em Pontedera, na Itália, enfim pudemos conhecer Grotowski.

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