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Arquivo Aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O quarto elemento

Recife, 2004

Arquivo Pessoal
Sônia Freyre, filha de Gilberto, a estudiosa Fátima Quintas e Newton
Sônia Freyre, filha de Gilberto, a estudiosa Fátima Quintas e Newton

NEWTON MORENO

A foto que ilustra este texto foi feita na Fundação Gilberto Freyre, antiga casa do sociólogo, hoje aberta à visitação. Minhas duas companheiras são personagens fundamentais na adaptação que fiz de "Assombrações do Recife Velho", de Freyre, montada em 2005 pelo grupo Os Fofos Encenam.

A quarta personagem deste relato é imaterial, logo pode ou não estar presente na foto, a depender de sua generosidade metafísica.

A primeira é dona Sônia, filha de Freyre, presidente da fundação à época. Fui vê-la no casarão em Apipucos com passos de fantasma. Levava o documento para oficializar a cessão dos direitos do livro para o teatro. Sem o aval dela, não poderia seguir com o projeto.

Estava temeroso de me aproximar do clã, dos mantenedores da obra. Precisava convencer dona Sônia da potência cênica que enxergava no texto de seu pai, mas não só: parte do projeto consistia em percorrer os logradouros mal-assombrados descritos no livro, conversar com moradores e acrescentar novos fantasmas ao elenco de lendas urbanas do texto.

Ou seja, vinha com uma proposta de intervenção na obra de um dos mais aclamados pensadores do Brasil. Confesso que tremi.

No banquinho ao fundo, emoldurado por azulejos, conversei com dona Sônia. Sua generosidade me comoveu. Mal avançou na leitura do projeto, abençoou-o com assinatura e sorriso. Revelou-se um espírito animado, excitado com minha paixão pela obra.

Talvez não tenha notado que eu tremia mais que os personagens do livro com as visões de lobisomens. Revelou que Freyre mesmo nunca viu uma aparição, que talvez tenha escrito a obra justamente para exorcizar a curiosidade, pelo que consta, nunca saciada.

De voz rouca e confiante, percorreu comigo a casa, dividindo seus medos e sua saudade. Fez eu me sentir parte do clã, conversando comigo sobre o pai, o homem, o Gilberto Freyre que só a filha poderia me fazer conhecer.

Fátima Quintas, ao centro da foto, foi quem me guiou pela riqueza da obra de Freyre. Fátima é filha dileta; unida a ele não pelo sangue, mas pelas ideias. Seguidora de seus escritos, revisitando-os em pesquisas, recebeu-me nos jardins da fundação em outro momento, já durante a pesquisa.

Fátima tem aquela calma autoridade intelectual que não se assoberba, que derrama suavemente reflexões e referências, sem intimidar o interlocutor. Ela me fez ver a gênese, o memorial descritivo, o diário de bordo, o que deve ter sido a construção do livro.

Me fez ver o frescor da abordagem freyriana para o cenário sociológico da época, a prosa científica e poética, a curiosidade para auscultar o povo. Ela me fez sentir parte do clã intelectual, apresentando-me o mestre, o escritor.

As duas foram as madrinhas de um processo-texto-espetáculo que tanto me ensinou sobre minha gente, minha cidade e sobre mim. Afinal, como disse Freyre, "é um passado que se estuda pisando em nervos". Até 2004, eu diria que foi o mais perto que cheguei de Gilberto Freyre. Mas gosto de acreditar que cheguei ainda mais perto.

Em frente ao trono de azulejos, há um belo jardim e memorial, homenagem ao antigo morador, bosque frondoso que o visitante perpassa ao entrar e sair do museu.

Certa vez, saindo sozinho num fim de tarde morno do Recife, ouvi passos ao cruzar o jardim. Senti uma presença, um frio no calor, uma evidência da ausência. Para mim, eram pegadas de Gilberto, que vinha abençoar minha aventura. E ouvi, de repente, uma risada. Um recado? Um susto bom.

Pensei: era essa a sensação que a plateia poderia ter ao entrar em nosso espaço. Era como se Freyre dissesse: 'Não tenha medo'. E o medo se derreteu aos poucos. Para mim, foi uma bênção do mestre por meio dos sons das cigarras, sugestões da noite que se impunha.

Esses sons foram transpostos para o espetáculo. Disse ao elenco que sugeria uma atmosfera de mistério, uma aclimatação para o público, mas foi uma homenagem àquele momento. Um modo de lembrar sempre, ao assistir à peça, que Gilberto talvez tenha me visitado e que talvez seja um quarto personagem na foto ao lado.

Se você olhar bem, poderá vê-lo, tal como o vejo agora.

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