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CINEMA
O tofu de Ozu
O desencantado senhor da solidão
RESUMO O crítico Carlos Augusto Calil comenta alguns aspectos da poética do
cineasta japonês Yasujiro Ozu, que tem boa parte de sua obra reunida em
retrospectiva em São Paulo e no Rio de Janeiro. O cineasta, que se declarava um
"fazedor de tofu", compôs um retrato original das transformações do Japão de
meados do séc. 20.
CARLOS AUGUSTO CALIL
ACABA DE PASSAR pela tela do CCBB-SP, a caminho do Rio (onde fica em cartaz até
22/8), uma das maiores retrospectivas do grande cineasta japonês Yasujiro Ozu
(1903-63).
Um público fiel marcava encontro regular na rua Álvares Penteado, no centro de
São Paulo, com devoção de iniciados e a certeza de compartilhar uma experiência
única. Segundo um crítico francês, a descoberta de Ozu (pronuncia-se Ôzu), mesmo
tardia, nos obriga a "repensar o cinema".
Esse realizador de mais de 50 filmes ao longo de 35 anos manteve-se
imperceptível ao espectador ocidental enquanto os festivais europeus cultuavam
Akira Kurosawa e Kenji Mizoguchi. O motivo? Era japonês demais para ser
compreendido por nós, simples ocidentais. Suspeito que o orgulho nipônico e sua
suficiência cultural tenham cunhado esta fórmula para preservar a exclusividade
do convívio com filmes cuja capacidade de extrair emoção do aparentemente banal
é de espantar.
Na tradição japonesa, consagraram-se duas formas de representação artística: o
"jidai-geki", com obras em contexto histórico, como por exemplo o teatro Nô e os
filmes de samurai, e o "gendai-geki", que aborda temas contemporâneos. Ozu era
fiel ao segundo modo.
GENTE COMUM Seus dramas familiares se desenrolam no restrito espaço da casa de
madeira e papel. Toda a sua imensa obra, com raras exceções, poderia ser
condensada num único tomo, sob o título "Pais e Filhos". E Ozu, que nunca foi
pai e morou com a mãe a vida inteira, invariavelmente toma o partido dos
genitores.
No seu estilo predomina o tom rebaixado, da desdramatização, o que volta e meia
o leva a obrigar o ator a repetir dezenas de vezes um gesto banal até que não
sobre resquício de interpretação. Seu ator preferido, Chishu Ryu, era
sabidamente um rosto sem expressão, um boneco de engonço, que se prestava à
perfeição ao movimento imposto pelo mestre oculto.
Yasujiro Ozu só se interessa por pessoas normais, imperfeitas, gente comum, em
meio às quais não há lugar para heróis. Mesmo o personagem mesquinho, caso da
filha mais velha em seu filme "Era uma Vez em Tóquio" (1953), que pede o quimono
da mãe na cerimônia do seu funeral, embora criticado, nunca é julgado, mas visto
com compaixão.
A vida ordinária dessas pessoas se desenrola em sucessivos "desacontecimentos",
num cotidiano levemente dramatizado, a que não falta o senso de humor,
geralmente introduzido pelas crianças. Ozu era um grande diretor de crianças,
retirava delas uma espontaneidade capaz de descontrair o espectador japonês, tão
condicionado ao protocolo da cordialidade social e à expressão codificada, de
cumprimentos formais e frases de sentido convencional.
Como em Hitchcock, com quem guarda muitas semelhanças, no cinema de Ozu
predomina a composição do quadro, a simetria, a harmonia, às quais se submetem
os atores, subordinados ao visual, à sua posição no cenário. Esse obsessivo
artista gráfico compunha os planos como "tableaux", em rigoroso equilíbrio.
O TEMPO E O ESPAÇO Os atores comportam-se como se estivessem sendo observados
pela câmera na posição de participante da cena. Como as pessoas em casa estão
sempre agachadas no tatame, a câmera, como hóspede, permanece baixa, na altura
do anfitrião. O plano é geralmente médio, a câmera não pode invadir o território
da pessoa.
A visualização é frontal, bidimensional, provocando o achatamento do quadro. Não
há linhas de fuga, mas planos sucessivos na distância. Como os japoneses não se
olham de frente, ele os representa sempre em posições paralelas, por isso pode
recusar o campo/contracampo, que no seu estilo de representação não tem função
nenhuma. Os personagens falam diretamente para a câmera. Ao espectador
desavisado, parece erro de continuidade, pela sistemática quebra do eixo.
No regime estritamente visual, surgem planos de naturezas mortas e paisagens,
que promovem a suspensão do fluxo narrativo e assumem a função de pontuação do
discurso. Um varal com roupas dependuradas. Um trem que passa. Um barco que
passa. Totens de neon. Empenas de prédios em composições abstratas, feitas de
contrastes de planos de luz. No quarto, um vaso na contraluz da madrugada. Rimas
visuais -a garrafa vazia e o farol, no início de "Ervas Flutuantes" (1959),
parecem nos dizer que o título do filme poderia ser "Pai e Filho".
Como na vida corriqueira, o tempo é escondido nos filmes de Ozu-san. A duração
adquire dimensão física, assim como a imagem. O tempo tem espessura, ressalta
sua materialidade. A obra de Ozu ilustra uma expressão contraditória, mas
corrente da língua portuguesa: o "espaço de tempo". O tempo se converte em
espaço na duração, e o efeito sobre o espectador é o de revelar uma certa
imanência. Existem igualmente na poesia japonesa versos curtos que não seguem o
fluxo lírico e o suspendem.
Os prazeres -sobretudo os orais- ocupam os personagens. Estão sempre a comer,
nem sempre iguarias. O supremo prazer pode estar condensado numa singela porção
de arroz com chá verde. Bebem muito: saquê, uísque ou cerveja. Jogam majongue ou
"pachinko" (espécie de "pinball" montado em série). Fumam muito, cantam, folgam,
trabalham por obrigação. O trabalho de escritório é sempre automático,
repetitivo, sem sentido.
Do mesmo modo, Ozu não hierarquiza sentimentos ou ações. Os meninos travessos de
"Bom Dia" (1959) desafiam os colegas a emitir peidos, sob controle. É claro que
um deles se borra todo. Em meio à conversa íntima, personagens começam a cortar
unhas.
Seus filmes podem ser estudados à luz da psicologia, em seu capítulo oriental,
mas sobretudo pela antropologia urbana. Um Lévi-Strauss já idoso, perguntado se
ainda ia ao cinema, respondia: "Só para ver filme de Ozu".
Nesses inúmeros filmes, há ainda quem reconheça uma ligeira nostalgia de um modo
de ser oriental que se perde com a ocidentalização compulsória do Japão, após a
derrota na Segunda Guerra Mundial (1939-45). Traços perceptíveis: homens e moços
de terno, mães e avós de quimonos, enquanto que as moças vestem saia e blusa. O
quimono é reservado para o casamento, e as moças já se sentem desconfortáveis na
tradição. Na verdade, Ozu apenas observa o rito de passagem do Japão tradicional
para o novo, que ele mesmo, cético, não consegue vislumbrar em sua extensão. Em
todo caso, na mesa do bar, compõe o quadro com duas garrafas: a do saquê e a do
uísque.
FILOSOFIA ZEN Se Ozu e seu sistema parecem impenetráveis aos ocidentais, há uma
senda de aproximação: a filosofia zen, que depura o existencialismo oriental, o
"estar-aí" das coisas, do decorrer do tempo. Entre as categorias zen, destacam-
se o culto à simplicidade, o elogio da maturidade (serenidade), a percepção do
estado de latência (o paraíso numa poça d'água), a valorização da informalidade
(cotidiano) e a aspiração à quietude (busca da harmonia das harmonias).
O zen associa as estações do ano às fases da vida: primavera (infância e
juventude), verão (apogeu), outono (declínio da velhice), inverno (morte). A
partir de 1949, com "Fim de Primavera", que no Brasil recebeu o título de "Pai e
Filha", Ozu realiza filmes que passa a intitular segundo a convenção zen:
"Começo de Verão" (no Brasil, "Também Fomos Felizes", 1951), "Começo de
Primavera" (1956), "Fim de Outono" (no Brasil, "Dias de Outono", 1960), "Fim de
Verão" (1961). Sua técnica nesse tempo simplifica-se ao máximo, com planos
fixos, cortes duros e a renúncia a ornamentos de estilo ou movimentos de câmera.
O zen ilumina igualmente a oposição entre exterior, em que se impõe o código
cultural em contraponto com a indiferença da natureza, e interior, marcado pela
percepção individual, que no limite espera a revelação da epifania. A súmula zen
é a consciência do "Mu", cuja tradução oscila entre o nada, o intangível e o
impalpável. Não por acaso, a lápide do túmulo de Yasujiro Ozu traz apenas esta
inscrição -"Mu".
Diante da consagração como mestre na sua arte, proclamava ser apenas "fazedor de
tofu", essa massa branca de soja, de sabor neutro, que pode receber amorosamente
os mais sutis sabores desse cozinheiro notável.
PAI E FILHA Peço licença ao leitor neófito, que ainda não provou o tofu de Ozu,
de tentar descrever a experiência de ser espectador de seus filmes. Escolho
aquele que me parece ser o maior deles todos, "Pai e Filha" (1949), por
cristalizar o método narrativo em seu mais alto nível. Nesse filme, o pai viúvo
vive com a bela filha, que se recusa a se casar por fidelidade ao papel herdado
da mãe. O pai, com a ajuda de amigos, inventa estratagemas para convencê-la.
Sequência: o pai (Chishu Ryu) chama a filha Noriko (Setsuko Hara) para uma
conversa. Ela arranca dele uma confissão sobre seu futuro casamento (na verdade,
uma simulação para liberá-la das funções da mãe). Ela chora. Ele a procura, ela
reage, traída. Corredor vazio. Ele passa e diz: "Amanhã tudo estará bem
novamente". Convida a irmã (Kumiko Miyake) a visitar o templo em Kamakura. A
irmã acha uma carteira e fica eufórica. Bom agouro. Eis um exemplo de senso de
humor ozútico.
Sequência: pai e filha viajam a Kyoto para a despedida de solteira dela.
Repousam no mesmo quarto de hotel. Ela tenta falar-lhe, ele dorme. Ela sorri de
compaixão. Um vaso em contraluz da janela. Imanência. Equilíbrio. Felicidade
fugaz.
Sequência: o pai e um amigo diante do Jardim de Pedra. Conversa deles: se os
filhos não se casam, geram preocupação; se se casam, frustração.
Sequência: menino está impaciente junto ao carro que levará a noiva. Dentro de
casa, a linda noiva paramentada. A tia evoca a mãe. Lança um último olhar sobre
o quarto, para certificar-se de que nada esquecia. Depois da cerimônia, o pai e
a amiga divorciada da filha tomam saquê. Ele então confessa que jamais pensou em
se casar de novo, mentiu para liberar a filha para o casamento. Volta para casa
sozinho. Senta, descasca uma maçã. Chora. Ondas na praia.
Ozu era mestre na contenção dos sentimentos e na manipulação da evolução
dramática até a liberação da emoção. Esta emana da natural condição humana
isenta de artifício, em forma de arte, sem intenção de arte.
Seus últimos filmes transmitem serenidade, equilíbrio, suave resignação. Com o
impacto da emoção em estado puro, desprovida de sentimentalismo, o espectador
experimenta uma sensação de plenitude, de conforto psicológico, de discreta
euforia, de reconciliação com "a vida como ela é". A catarse como a melhor
terapia.
"Então a vida é decepção?", pergunta a filha mais jovem no velório de sua mãe em
"Era uma Vez em Tóquio". "A vida é um sonho vazio", constata o bêbado aposentado
em "Começo de Primavera".
A obra de Yasujiro Ozu, o desencantado senhor da solidão, transcende o cinema, é
cultural e coletiva, é de toda uma cultura codificada. Por isso, pensam os
japoneses que é incompreensível aos ocidentais. Ledo engano, para nossa
felicidade.
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