São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2011

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TERRORISMO

O que é isso, montonero?

A luta das vítimas do terror argentino por reparação

RESUMO Ao contrário dos crimes cometidos pelo Estado na ditadura argentina, jamais foram investigados ou reparados os assassinatos e atentados terroristas perpetrados pela guerrilha armada. Ex-integrantes de grupos como Montoneros e ERP integram o governo Kirchner, que se nega a atender os pleitos das vítimas.

SYLVIA COLOMBO

Muita coisa aconteceu na vida de Clotildo Barrios, 57, desde aquela terça, 6 de dezembro de 1977: teve três filhos, divorciou-se, casou-se de novo, ganhou um considerável conjunto de rugas no rosto e calos nas mãos de metalúrgico.
Mas é como se sua vida estivesse fixada naquele dia, 34 anos atrás, quando o chefe de turno na fábrica em Avellaneda, na grande Buenos Aires, o chamou com afobação para lhe dar a notícia, recebida de dois médicos: "Seu filho foi baleado, tem poucas chances".
"Cheguei ao hospital e estava tudo uma bagunça. Havia polícia, muita gente, minha mulher chorava. E meu filho estava morto", disse Barrios à Folha. Juan Eduardo, 3, acompanhara a mãe, que fora ao banco pagar uma conta de luz, na cidade onde moravam, Monte Chingolo, na província de Buenos Aires. Na saída, ele viu um quiosque e pediu um sorvete.
Nisso, um Ford Torino laranja parou no local. Uma mulher pôs meio corpo para fora da janela e abriu fogo. O alvo era o cabo Herculano Ojeda, que trabalhava no banco como vigia.
A rajada de metralhadora matou Ojeda; uma bala perdida acertou Juan Eduardo.
Desde 24 de março de 1976, a Argentina vivia uma ditadura feroz, sua sexta no século 20, que duraria até 1983 e deixaria um vasto saldo de desaparecidos -a contagem varia de 8 mil a 30 mil pessoas. Juan Eduardo, no entanto, é uma vítima da guerrilha armada, que pode ter feito 1.355 mortos.
"Eu nunca militei. Tinha colegas de fábrica que eram montoneros", conta Barrios, citando um dos principais grupos armados da época. "Estávamos no meio da ditadura e, quando eu os ouvia, simpatizava com a ideia de resistência que defendiam. Até o dia em que mataram meu menino e eu percebi o delírio que era aquela guerra."
O cálculo é do Celtyv (Centro de Estudos Legais sobre o Terrorismo e suas Vítimas), ONG comandada pela advogada Victoria Villaruel, 36. Criado em 2006, o Celtyv pede julgamento e indenizações pelos crimes da luta armada, comparando-os a ações terroristas na Espanha, cometidas pelo ETA basco, ou na Colômbia, pelas Farc.
Atualmente, tem 15 causas abertas em diferentes províncias, ainda sem vitórias. Tem chances de sucesso? "Sinceramente, acho que não", diz Villaruel. "Só continuamos porque não podemos ficar calados diante de um governo que decidiu defender apenas um lado da guerra dos anos 70 em seu discurso sobre direitos humanos."

BANDEIRA De fato, a bandeira foi encampada pelo governo assim que Néstor Kirchner (1950-2010) assumiu o poder, em 2003: cooptou grupos como as Mães e as Avós da Praça de Maio, os principais movimentos populares que pediam explicações pelos desaparecimentos, e anulou as leis de Obediência Devida e Ponto Final proclamadas por Raúl Alfonsín no final de seu governo. Sem elas, os agentes do Estado que perpetraram torturas ou execuções a mando de superiores hierárquicos já não tinham perdão garantido.
Num gesto famoso, Kirchner mandou retirar a foto do ditador Jorge Videla da galeria do Colégio Militar. Videla foi parar na cadeia, onde está hoje, aos 86, condenado a prisão perpétua. Iniciou um amplo processo de julgamento dos repressores das Forças Armadas.
A iniciativa dos Kirchner não inclui a investigação dos crimes dos Montoneros e de outros grupos armados. Ao assumir a Presidência, Alfonsín tentara investigar os dois lados, com ênfase nos crimes do Estado, mas viu-se pressionado a promulgar as leis que anistiavam ambos. Seu sucessor, o peronista Carlos Menem (1989-99), concedeu indultos que libertaram tanto generais como guerrilheiros.

VIOLÊNCIA Não é fácil compreender a espiral de violência política que tomou o país nos anos 70. Ficou na memória o atroz aparato repressor que o governo militar montou em 1976, após o golpe que depôs Isabel Perón. Atirar prisioneiros ao mar nos "voos da morte" ou entregar para adoção os bebês nascidos nos porões da tortura viraram símbolos do que o Estado foi capaz em matéria de crimes.
Mas esse é só um lado da moeda. Grupos armados de esquerda, como os Montoneros -nome inspirado nas "montoneras" ("guerrilheiras") do século 19, milícias lideradas por caudilhos- e o ERP (Exército Revolucionário do Povo) agiam desde o início da década. Sequestros, tortura, atentados a bomba e assassinatos integravam o programa revolucionário.
A radicalização dos Montoneros está relatada na nova edição argentina de "Soldados de Perón" [Sudamericana, 480 págs., R$ 34], do historiador britânico Richard Gillespie, que conta como o grupo atuou para desestabilizar os governos anteriores à volta de Juan Domingo Perón (1895-1974) do exílio na Europa, em 1973.
Os Montoneros esperavam que, com o retorno do general, fosse implantado o socialismo na Argentina. Mas a figura de Perón imantava tanto a esquerda quanto a direita. Quando voltou ao poder, em 1973, começou a se afastar dos Montoneros, que teriam assassinado o líder sindical José Ignacio Rucci.
Morto em 1974, o general foi sucedido por sua mulher e vice, Isabelita, que estava longe ter o carisma e a popularidade da mítica primeira-dama Evita. Em 1976, foi deposta num golpe militar. Durante toda a ditadura, os Montoneros atuaram na resistência.

KIRCHNER O governo de Cristina Kirchner desestimula a investigação das ações da guerrilha, que, por serem crimes comuns, prescreveram em cerca de 15 anos. Tanto no governo de Néstor (2003-07) como no atual, de sua viúva, ex-militantes têm papel central. O procurador-geral da República, Esteban Righi, foi um importante aliado dos Montoneros no governo de Hector Cámpora (maio a julho de 1973). Foram montoneros o influente deputado Carlos Kunkel e Horacio Verbitsky, espécie de assessor especial da Presidência acusado de envolvimento em atentados terroristas.
Ativistas de direitos humanos e governo falam em 30 mil desaparecidos em ações do Exército. Relatório da Conadep (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas), da gestão Alfonsín, lista 7.954 mortos. As cifras são fonte de disputa política e ideológica.
As vítimas do terror do Estado têm direito a indenizações que chegam a US$ 220 mil. Já os que morreram em decorrência de ações da guerrilha não têm direito a nada. Raras vezes houve uma compensação pela destruição de casas ou outros bens.

DISCREPÂNCIA Questionada sobre a discrepância, a Secretaria de Direitos Humanos argentina respondeu à Folha: "Os crimes de lesa-humanidade, segundo jurisprudência da Corte Suprema, são aqueles nos quais participaram agentes do Estado, não os cometidos por grupos ou pessoas alheias ao Estado. Os crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis, os cometidos por particulares se encontram prescritos por conta do longo tempo transcorrido."
Defensores de vítimas da guerrilha contestam. Para Javier Vigo Leguizamón, advogado de um grupo de vítimas, é um erro classificar como crimes comuns os que foram cometidos por grupos como os Montoneros ou o ERP. "Havia uma guerra na Argentina, e esses grupos cometeram um ataque sistemático à população civil com intenções políticas", disse ele à Folha. "Isso deve ser considerado crime de lesa-humanidade."
Para Villaruel, o terrorismo é o melhor exemplo de crime de lesa-humanidade. "O terrorista não é um criminoso comum porque não está interessado em roubar sua carteira e só. Quer matar, assustar a sociedade e que esse fato seja noticiado, amplificando seu efeito. O alvo é político, é o Estado."
Desde 2003, a justiça argentina adota a definição de crime de lesa-humanidade descrita no Estatuto de Roma (1998), interpretando que crimes do Estado são de lesa-humanidade. Há quem conteste a aplicação do estatuto, argumentando que ele não é retroativo. Para Villaruel, só 30% dos mortos pela guerrilha são militares. "Nessa versão da história, em que de um lado havia militares maus e do outro militantes românticos, que é a que o governo defende, a vítima civil tem de desaparecer. Pois, se seu drama é contado, a história oficial não fecha", diz.

REPARAÇÃO A italiana Lorenza Ferrari, 81, viúva e doente, não sabe quem vai cuidar de Abel, seu filho deficiente, quando ela morrer. Há 35 anos, pede ao Estado reparação pelo assassinato de Laura, sua filha, morta aos 18 anos num atentado a bomba na Universidade de Belgrano, em Buenos Aires, em 1975. Em vão, já entrou na Justiça e mandou cartas a presidentes.
"O discurso de conciliação dos governos democráticos diz que cada lado da guerra dos anos 70 tinha que admitir seus erros e passaríamos a viver em paz. Mas, e eu, que erro cometi?", pergunta.
Laura não militava. Segundo a mãe, evitou o ensino público na Universidade de Buenos Aires porque lá era intensa a agitação política. Entrou no curso de ciências econômicas da Universidade de Belgrano, particular. Em 8 de setembro de 1975, ela e três amigos esperavam colegas dentro de um carro, na porta da faculdade. Então o automóvel da frente explodiu, ferindo a todos no carro e matando Laura.
Outros ataques tiveram alvos civis, como os sequestros realizados para financiar a luta ou fazer trocas por presos políticos. A advogada Victoria Paz, 57, lembra a noite em que mataram seu pai, o usineiro José María Paz. "Sabíamos que algo poderia acontecer. Minha família tinha dinheiro e vivíamos em Tucumán, que era um centro guerrilheiro importante", recorda. "Recebemos ameaças por meses, pensamos em fugir para o Brasil, mas meu pai não queria abandonar o que tinha construído."
Em 7 de agosto de 1974, José María desembarcou no aeroporto de San Miguel de Tucumán, capital da província, e, de táxi, rumou para casa. O carro foi bloqueado pelos montoneros, que exigiram que Paz os acompanhasse. Como o seguraram pelo paletó, Paz escorregou para fora da roupa e correu. Os guerrilheiros o seguiram e o balearam. Socorrido, Paz foi operado. Enquanto isso, os montoneros ameaçavam invadir o hospital e matá-lo. Paz não resistiu e morreu.
"Minha família está destruída até hoje, minha sobrinha de 22 anos se matou com um tiro após recebermos uma ligação de alguém que dizia saber quem eram os assassinos e que eles estavam vivos", disse Victoria à Folha.
Segundo ela, os guerrilheiros tornaram a província de Tucumán tão violenta que ela chegou a comemorar o golpe. "Pensava que as bombas iam parar, que as mortes não ocorreriam mais. Mas não foi assim, a violência continuou. Quando a ditadura acabou e eu, só então, soube a proporção da repressão militar, imediatamente fiquei contra ela também."

MILITARES Entre as vítimas militares, o processo mais famoso é o do coronel Argentino del Valle Larrabure. Em 10 de agosto de 1974, ele foi sequestrado numa festa, na Fábrica Militar de Villa Maria, em Córdoba, por guerrilheiros do ERP.
Refém por 372 dias, foi torturado e espancado. Depois, foi encontrado morto num terreno baldio. A guerrilha afirma que o militar se suicidou. A família nega. Peritos concluíram que foi assassinado.
Há duas versões para explicar o sequestro: para uns, o ERP queria trocá-lo por presos políticos; para outros, o grupo exigiu que Larrabure, engenheiro químico, montasse uma bomba para eles.
Hoje, seu filho Arturo, 52, vive em Tres Arroyos, na província de Buenos Aires, e luta para que a história seja contada. Em 2007, numa ação quase inédita, um juiz de Rosario reabriu a causa, entendendo que, pela crueldade e por ter sido cometido no regime democrático, trata-se de crime de lesa-humanidade. O processo ainda segue.
Arturo, que contou a história de seu pai em "Un Canto a la Patria" (ed. Buenos Aires), diz não ter esperança de reparação, mas afirma que irá a tribunais internacionais se os recursos na Justiça argentina se esgotarem. "Quando vejo todos esses ex-guerrilheiros no poder, os casos de corrupção, ou ouço afirmarem que são um governo dos direitos humanos, penso: 'Foi para isso que mataram meu pai?'."
Em "Operación Primícia" (ed. Sudamericana), o jornalista Ceferino Reato narra um ataque a militares no governo de Isabel Perón. Foi em 5 de outubro de 1975, na província de Formosa, no norte do país. Montoneros atacaram um quartel, após terem sequestrado um Boeing da Aerolíneas Argentinas. Naquele domingo, os oficiais estavam em casa. Soldados com 21 anos em média guardavam o quartel. Houve 24 mortos: 12 montoneros e 12 militares. Os guerrilheiros sobreviventes fugiram no Boeing.
A investigação judicial sobre o ataque permanece aberta num tribunal de Formosa. Em entrevista à Folha, Reato diz: "Os guerrilheiros que morreram nesse ataque estão nos monumentos às vítimas do terrorismo de Estado e seus parentes receberam indenizações milionárias, enquanto os soldados mortos ali não são recordados por ninguém e seus pais sobrevivem na miséria, recebendo uma pensão baixíssima. A diferença do valor entre um guerrilheiro morto e um soldado morto é, para o Estado argentino, seis vezes maior."

ARAMBURU Entre os crimes contra militares, o mais célebre é o assassinato do general Pedro Eugenio Aramburu, que participou do golpe que depôs Perón em 1955 e governou a Argentina até 1958.
Aramburu foi sequestrado em sua casa, em Buenos Aires, em 29 de maio de 1970, por montoneros disfarçados de oficiais. Submetido a um "júri popular", foi executado.
O líder do grupo, Mario Firmenich, participou da operação. Ao fim da ditadura, foi preso, mas recebeu indulto na era Menem e hoje vive em Barcelona. "Firmenich foi libertado como Videla. Eram leis diferentes, mas, se serviu para um, deveria servir para o outro", diz Villaruel, do Cetyv. Em vão, a advogada tentou entrar com um pedido de extradição para que Firmenich fosse julgado na Argentina.

CLAMOR O clamor por reparação dos crimes da guerrilha tem aumentado. Para Villaruel e Larrabure, a explicação é que, por muitos anos, as vítimas se viram destruídas e não se animavam a reclamar seus direitos. Há, porém, quem pense que isso só acontece por causa da narrativa polarizada que o governo K faz dos anos 70.
"Essas vítimas só estão falando agora por pressão de grupos de direita, para atingir Cristina [Kirchner]. Não me parece saudável para o país neste momento que comecemos a ver os militares como vítimas", diz o escritor e ex-montonero Martín Caparrós.
O jornalista Jorge Lanata concorda. "Legalmente, o governo está certo. Poderia ter havido uma melhor distribuição das indenizações, porque isso realmente foi caótico. Mas está correto o governo ao afirmar que o crime do Estado é mais grave que o de um civil e dar mais importância àquele."
Reato rebate: "Há uma hegemonia do relato único do governo, de que só o Estado agiu mal e de que essa gestão está reparando todas as atrocidades. Mas o que estão fazendo é apagar a responsabilidade dos guerrilheiros. Viraram vítimas comuns. Não está certo. A história está sendo muito mal contada."
Para Vigo Leguizamón, se algo não for feito, as gerações posteriores verão os guerrilheiros de modo doce, como heróis românticos. "Se os livros escolares continuarem contando a história assim, daqui uma ou duas gerações os argentinos poderão achar que pegar em armas contra o governo é correto."

TODOROV Em visita à Argentina em 2010, o intelectual búlgaro Tzvetan Todorov criticou a transformação ideologizada e maniqueísta dos guerrilheiros em vítimas passivas, impedindo uma compreensão crítica. Disse que os argentinos se preocupam mais com a memória que com a história.
Estranhou não ver explicações sobre o contexto no qual aquelas pessoas morreram, durante visita à Esma (Escola de Suboficiais de Mecânica da Armada), principal porão da tortura argentina, e ao parque da Memória, que registra num monumento o nome dos desaparecidos entre 1969 e 1983.
O do menino Juan Eduardo Barrios, morto aos 3 anos em Monte Chingolo enquanto comprava um sorvete, não estava lá.

Sequestros, tortura, atentados a bomba e assassinatos faziam parte do programa revolucionário de grupos armados de esquerda, como os Montoneros e o ERP

Não é fácil compreender a espiral de violência política que tomou a Argentina nos anos 70. Ficou na memória apenas o atroz aparato repressor que o governo militar montou em 1976

Laura não militava. Ela e três amigos esperavam colegas dentro de um carro, na porta da faculdade. Então o automóvel da frente explodiu, ferindo a todos e matando Laura

Em visita à Argentina, em 2010, o intelectual búlgaro Tzvetan Todorov criticou a transformação ideologizada e maniqueísta dos guerrilheiros em vítimas



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