São Paulo, domingo, 03 de abril de 2011

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CRÍTICA

Misteriosos resmungos

O livro "censurado" de Elizabeth Bishop

RESUMO
Fina observadora do Brasil, Elizabeth Bishop (1911-79) escreveu o livro introdutório sobre o país, sob encomenda, para uma coleção popular da Time-Life. Desgostosa com alterações editoriais, a poeta americana cultivou a percepção (exagerada, porém reforçada por críticos) de que o texto foi "censurado" por razões políticas.


BENJAMIN MOSER
tradução PAULO MIGLIACCI


MEIO SÉCULO se passou desde que a Life World Library foi lançada, em 1961. Hoje, os volumes estão disponíveis nos sebos on-line por menos de um dólar -e imploram por compradores. O que os torna baratos é sua idade e a associação à marca Time-Life, com seus títulos voltados ao mercado de massa ("Mistérios do Desconhecido", "Reparos e Melhorias Domésticas") e seus leitores de classe média -ainda que a palavra "leitores" talvez seja um exagero, pois é difícil saber quem de fato leu esses livros ricamente ilustrados. Mas a Life World Library já foi bastante popular, e tinha lá suas ambições e qualidades, como prova a autora do volume sobre o Brasil: Elizabeth Bishop.
Na época em que escreveu o livro, Bishop já vivia no Brasil havia uma década. Sua excêntrica cônjuge, Lota de Macedo Soares, deu-lhe acesso aos mais altos: no século 20, nenhum outro visitante de tamanha importância esteve tão bem posicionado, ou ficou tanto tempo (15 anos). Porque o Brasil estava presente em toda a sua obra e porque este livro traz a sua mais longa exposição sobre o país, recebeu atenção acadêmica em grau nunca conferida aos demais títulos da série.

CENSURA
As nuvens de censura que pairam sobre o livro o tornam ainda mais intrigante, uma situação enfatizada por Lloyd Schwartz, editor da versão recém-publicada em "Prose" [Farrar, Straus & Giroux, 576 págs., R$ 40], que deverá ser lançada no Brasil pela Companhia das Letras em 2012. Bishop "era notória por não gostar das mudanças que os editores fizeram no que escreveu", afirma Schwartz. Além disso, o seu capítulo final original, que a Folha publica nas páginas seguintes, era "completamente diferente" da versão publicada, que "trata daquilo que os Estados Unidos e o Brasil têm em comum, e no qual ela elogia o modo mais efetivo pelo qual o Brasil trata das questões raciais".
A nova versão, no entanto, não ajuda a esclarecer o quê exatamente ela odiava nas intervenções dos editores; pelo contrário. Graças a Schwartz, agora temos provas de que a própria Bishop decidiu nos informar que "o Brasil conta com cerca de 22 milhões de cabeças de ovinos"; que o setor madeireiro brasileiro, em sua opinião, "ainda não atingiu seu potencial"; e que São Paulo "tem uma atmosfera vibrante, cosmopolita". Mas até quem acha o livro pouco inspirado pode encontrar nele coisas reveladoras sobre o Brasil, a autora-e como mitos biográficos são criados.

AUTORIDADE
"É horrível", Bishop escreveu ao retornar para os EUA, "imaginar que provavelmente serei considerada uma autoridade em Brasil pelo resto da minha vida". Não estava sendo modesta. O português de Bishop, renomada tradutora de literatura brasileira, era péssimo. Admitiu que o falava "feito um cachorro"; e em "Prose", encontram-se erros chocantes para alguém que ficou tanto tempo no Brasil. Mas Bishop é também uma observadora perspicaz.
Ela descreve cerâmicas "polidas com cascas de frutas" e "temporais que saltavam de pico em pico em torno da baía" de Guanabara; e diagnostica todos os males do velho Brasil numa fotografia que mostra d. Pedro 2º em visita a Niágara: "As influências estrangeiras, mal digeridas mas ainda assim avidamente procuradas, a tentativa de adaptar o inapropriado (mesmo nas roupas) e a negligência ou ignorância quanto aos recursos nacionais. D. Pedro era 'proprietário', por assim dizer, de cataratas três ou quatro vezes maiores e mais magníficas que as de Niágara, mas de difícil acesso, e apesar de toda a sua curiosidade e de todas as suas viagens, jamais as viu". Essa imagem entrou na categoria "censura": "três ou quatro vezes maiores e mais magníficas" foi alterado pelos patrióticos editores da Life para "quase tão espetaculares".

RAÇA E POLÍTICA
Mas o cerne das mudanças, como afirma Schwartz, se refere a dois trechos sobre raça e política. Bishop recicla alguns clichês sobre a atitude brasileira quanto à raça ("os portugueses sempre se sentiram sexualmente atraídos pelas mulheres das raças mais escuras"; "a riqueza e variedade dessas artes nativas devem muito ao fato de que elas, como o povo, são uma mistura de raças"), antes de afirmar que "para um sul-africano, ou norte-americano, ou qualquer um que já morou num país colonial, ouvir uma cozinheira negra referir-se à sua patroa, uma velhinha branca, como 'minha negrinha' de modo afetuoso constitui uma revelação -uma lufada de ar fresco, enfim".
O trecho foi alterado para o quase idêntico: "Aos olhos de um sul-africano ou norte-americano de inclinações progressistas, por exemplo, é revelador ouvir, como acontece no Brasil, uma cozinheira negra chamando sua patroa pequenina, velhinha e branca de 'minha negrinha' ['my little nigger'] como expressão de afeto". O crítico Daniel Bosch vê nisso um exemplo de trecho "vívido, específico e engajado sobre raça e pobreza" que teria sido "arruinado" pelos editores a fim de servir à sua "política comercial".
É fato que o texto de Bishop foi encurtado, mas não houve perda de declarações radicais, e Bishop não percebeu que a palavra "neguinha", que é o que ela certamente quis dizer, é uma expressão carinhosa que não poderia estar mais distante do explosivo "nigger". "Os povos coloniais se entendem", escreve Bishop em determinado ponto; mas isso nem sempre é verdade, especialmente quando um colonial fala tão mal o idioma de outro.
E é com relação à política brasileira que Bishop tem mais a perder diante da decisão editorial de chamar nova atenção ao seu texto. Aproveitando a deixa de Lloyd Schwartz, um indignado Bosch descobre "o modo pelo qual o original de Bishop foi atenuado, castrado e reescrito de maneira a ocultar suas posições políticas e expressar a opinião política da Time Incorporated" -na suposição implícita de que as crenças políticas de Bishop estariam à esquerda das posições da Time Incorporated.
A prova está no fato de que uma frase de Bishop ("os integralistas, o único partido protofascista do Brasil, existiram por breve período 20 anos atrás. Há comunistas e nacionalistas") foi expandida de forma a incluir uma discussão da ameaça comunista ao país: "Nas cidades, existem grupos de estudantes inspirados e liderados pelos comunistas, e existem comunistas ou seguidores do comunismo entre os oficiais do Exército. Mas é difícil determinar até que ponto sua ameaça é séria".
Na verdade, se os editores erraram, foi em apresentar Bishop à esquerda de suas posições reais. No livro, ela elogia a "política pacífica" do Brasil -"como uma forma portuguesa de tourada na qual não há abate, as revoluções ou golpes brasileiros às vezes parecem ser pouco mais que manobras políticas e retóricas"- e escreve que o seu desejo de críticos mais ferozes para policiar a literatura brasileira "é quase tão ruim quanto dizer que os países latino-americanos precisam de ditadores".

GOLPE
No entanto, num caso crucial, era exatamente nisso que Bishop acreditava. Dois anos depois da publicação do livro, o presidente democrático foi derrubado e Bishop estava entre os entusiastas do golpe, escrevendo que "as reações foram realmente populares, ainda bem", e mais tarde justificando a "suspensão de direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc." com a afirmação de que "era algo que precisava ser feito -por sinistro que pareça".
Portanto, "Brazil" não deveria ser convocado como prova das ideias progressistas de Bishop -ou como prova de qualquer outra coisa. Afinal, não há nada desonroso em escrever por dinheiro. Todo escritor aceita missões burocráticas, e Bishop recebeu o maior adiantamento de sua carreira -US$ 10 mil, ou mais de US$ 72 mil nos valores de hoje- por esse livro. E fez o que foi paga para fazer: o mais notável no livro talvez seja que o fato de que os editores tenham precisado mexer tão pouco no texto.
Se quisermos textos sobre o Brasil nuançados e por vezes polêmicos, devemos buscá-los na poesia e na correspondência de Bishop. E então, para preservar a autoestima de uma grande escritora, podemos fingir que aceitamos, com um sorriso e uma piscadela, seus misteriosos resmungos quanto a uma obra-prima mutilada

É com relação à política brasileira que Bishop tem mais a perder diante da decisão de chamar nova atenção ao seu texto

"Brazil" não deveria ser convocado como prova das ideias progressistas de Bishop -ou como prova de qualquer outra coisa


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