São Paulo, domingo, 03 de julho de 2011

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IRAQUE

Sempre teremos o heliporto

Bagdá mergulhada em guerras sectárias

RESUMO
A vida em Bagdá ainda é percebida por seus habitantes como um "inferno", embora os piores momentos já tenham passado. Postos de controle, tráfico de armas e uma guerra sectária entre xiitas e sunitas marcam o cotidiano bagdali, entre o caos geral e a tranquilidade artificial da Zona Verde, controlada pelos EUA.

IGOR GIELOW

O PERENE véu de areia que cobre Bagdá estava particularmente espesso numa calorenta manhã de julho de 1997, quando Nezar Mhawi, então com 16 anos, atravessava a ponte Ahrar em direção à loja de ferragens em que trabalhava com seus primos, no bazar Shorja, no centro da cidade.
Eram cerca de 7h30 e ele teve de limpar os olhos. "Era um borrão negro, que virou uma mulher de abaya, puxando duas crianças e com um bebê no colo. Ela o jogou no rio como se fosse um saco de lixo", conta Mhawi.
Ventava um pouco, e a abaya -o manto longo usado pelas xiitas iraquianas- impedia a comunicação visual entre ela e o jovem. A segunda criança, de uns quatro anos, foi erguida pelo braço e largada lá embaixo.
A terceira, de cerca de dez anos, correu em direção a um Mhawi sem ação. A mulher foi atrás, a agarrou e olhou assustada para ele. Virou-se e, antes que Mhawi pudesse fazer qualquer coisa, precipitou-se, com a criança apertada contra seu corpo, nas águas do Tigre.

AEROPORTO Quase 14 anos depois, o hoje calvo Mhawi chega esbaforido, após passar por incontáveis revistas, ao saguão do aeroporto de Bagdá. Ele será meu "fixer", o "faz-tudo" de jornalistas que precisam de tradutor, motorista e cicerone numa só pessoa. Fingi ignorar o atraso de meia hora; estava entretido com o fato de cada relógio do antigo Saddam International estar parado numa hora diferente.
Mhawi tem uma boa desculpa. Na noite anterior, um incêndio consumiu sua produtora. Ele vive de fazer curtas e alugar equipamento para cineastas, videomakers e jornalistas.
"Acho que perdi uns US$ 150 mil (R$ 236 mil). Não sei o que fazer, mas vou dar um jeito", relata, com um estoicismo que soa autêntico. Ao longo de uma semana, ele contou muitas histórias com o mesmo desassombro. Quando topamos com alguns dos personagens delas, o tom frio é o mesmo.
Mhawi cresceu sob Saddam Hussein no conflito com o Irã, tinha dez anos quando as bombas de Bush pai caíram em 1991, sobreviveu à fome que assolou o país e matou ao menos 500 mil pessoas durante o embargo subsequente, viu Bush filho terminar o serviço em 2003 e enterrou 14 amigos na balbúrdia sectária que inundou Bagdá de sangue no pós-invasão americana.
Mas é só a cena da mãe presumivelmente faminta que joga os filhos da ponte antes de se matar que o faz embargar a voz.

CIDADE SITIADA Bagdá é uma cidade sitiada por barreiras de concreto, arame farpado, toque de recolher entre 1h e 5h e, na semana em que chego, interditada para a realização de um festival xiita que comemora o martírio do sétimo imã. Tendas de apoio a peregrinos estão espalhadas pelas ruas, fechadas ao tráfego. "Um inferno", pragueja Mhawi, xiita e ateu.
Há uma quantidade incrível de postos de controle. "Ok, pode passar", diz o jovem policial com insígnia do Ministério do Interior no uniforme. "Não, você não pode ir por este caminho", diz, a 200 metros dali, um gorducho do Exército, com roupa camuflada em tons de areia. "Mas a rua é a mesma, e seu colega nos liberou lá atrás", tenta argumentar Mhawi, só para ouvir um impropério.
Palavrões são uma parte importante da conduta na cidade. Os mais pesados colocam o nome de Deus no meio e são invariavelmente escatológicos ("eu fodo a sua irmã enquanto cago em você").
"Sou de família moderna, mas tem coisa que não muda. Casei virgem. Antes... bem, antes a gente se divertia do jeito que dava", conta a atriz Naila, que tem 28 anos e é casada com um dos melhores amigos de Mhawi.

GUERRA SECTÁRIA Ela resume bem os problemas do dia a dia no Iraque. Se antes havia a opressão da ditadura do partido Baath de Saddam Hussein, o caos da "democracia" implantada a bala pelos EUA levou a um acerto de contas entre o mundo secular e o religioso. A guerra sectária matou dezenas de milhares entre 2006 e 2008.
A versão convencional no Ocidente diz que a maioria xiita enfrentou a minoria sunita que governava sob Saddam, tendo como cenário os ataques contra a ocupação americana no fundo.
É isso, mas é mais. Naila, por exemplo, é xiita como Mhawi. Mas ambos são de famílias cujos pais estiveram no Partido Comunista e foram alvo de pressão de vizinhos xiitas religiosos, ligados ao Irã e ao Exército do Mahdi, do clérigo Muqtada al Sadr.
Ela conta que, de repente, teve de sair de casa com um hijab, o véu que cobre os cabelos e o pescoço: "O governo colocou barreiras de concreto dividindo nossa vizinhança, e meu marido teve de ir para a Síria para não ser morto".
americanos Os americanos são vistos como os grandes culpados pelo estouro da panela de pressão. Xiitas e sunitas disputam o poder no Iraque há séculos, e apenas durante o período da monarquia fantoche instalada pelos britânicos (1921-1958) houve algo parecido com uma acomodação.
De uma hora para outra, com os "libertadores" americanos no poder, para conseguir um emprego era preciso incluir a tribo no currículo, para indicar o ramo religioso correspondente. Carteiras de identidade viraram prova de filiação sectária e, portanto, podiam transformar-se em sentenças de morte.
"A falta de sensibilidade foi incrível. Queriam uma mulher trabalhando com a Autoridade Provisória da Coalizão e me convidaram. Fiquei feliz, mas aí me contaram que eu teria de usar hijab", relata, em sua confortável casa, a hoje deputada Safia al Souhail, 46. "Eu nunca cobri a cabeça na vida! Eles tinham medo dos religiosos e inventaram essa ficção."
Safia é filha do legendário Taleb Souhail --dissidente que Saddam mandou executar no Líbano, em 1994.
Hoje a situação está mais controlada. Washington diz que foi o "surge", o aumento temporário de tropas em 2007, que resolveu a questão e pavimentou o caminho para a retirada da maior parte dos 50 mil soldados que irá ocorrer no fim do ano.
Não se ouve um só iraquiano nas ruas com a mesma opinião: é impossível ignorar o controle de largas porções da cidade que a guerra sectária deu aos xiitas pró-Irã. Dois terços dos talvez 6 milhões de bagdalis vivem em Sadr City, o centro do poder de Muqtada que leva o nome de seu pai.

PRIMAVERA O secularismo está acossado. A famosa rua Mutanabi, com seus cafés filosóficos, livrarias e candidatos a poeta (a poesia é a arte maior por lá, e todo mundo com pretensões intelectuais se diz um bardo), nunca mais voltou à forma após um grande atentado em 2007, que matou 30 pessoas (os livreiros falam em 70). O arremedo de "primavera árabe" que ocorre na praça Tahrir (homônima da irmã famosa no Cairo) local todas as sextas surgiu porque o governo queria fechar bares. Mas, como repete Mhawi, "a coisa já foi bem pior".
"Cheguei a comprar um fuzil AK-47. Nunca o disparei, mas está lá em casa. Tinha identidades falsas de xiita, sunita, cristão. Uma para cada ocasião", conta.
Hoje, uma arma semelhante está ao alcance do celular, no centro, por US$ 300 (R$ 471). Um passaporte iraquiano sai por US$ 500 (R$ 786); um europeu, por até US$ 20 mil (R$ 31 mil). Minas pessoais? Lança-foguetes? Tudo isso é de fácil acesso, o que leva a mais previsões sombrias.
"Os americanos vão embora ou, ao menos, vão se esconder lá no castelo deles. Todo mundo está armado. Basta uma fagulha, um religioso morto, para isso aqui pegar fogo", diz Mhawi, e completa: "Que nem a minha produtora".

EMBAIXADA Castelo é um termo apropriado: tem até fosso inundado separando seus muros do rio Tigre; só faltam os crocodilos. Trata-se da gigantesca embaixada americana -a maior do mundo-, dentro da Zona Verde. Para chegar até lá, é preciso uma credencial especial que o cineasta tem porque mora em um dos antigos prédios residenciais do setor.
A Zona Verde é o único lugar de Bagdá no qual motoristas obedecem ao semáforo. Celulares param de funcionar com a passagem de comboios com bloqueadores.
"É ruim, eu sei, mas, com a nova embaixada, praticamente não precisamos sair de dentro para nada. Tem shopping, clube, casa para todo mundo", diz Sharon, tomando um drinque colorido insondável. Com seus 30 e poucos anos, ela acaba de assumir, por dois anos, um posto secundário na embaixada. "E, se der merda, sempre tem o heliporto", resume.

BALÃO De fato, helicópteros infestam o céu de Bagdá -que, como Cabul, tem no horizonte um estático balão de vigilância, híbrido de artefato da Primeira Guerra Mundial e Big Brother. Como se os americanos, invisíveis nas ruas, apenas olhassem de cima o estrago que fizeram.
Mhawi não quer ser mais um, como tantos de seus amigos, que resolveu fugir para o exterior e olhar de cima a confusão. Diz que só sai se uma nova guerra sectária ocorrer. "E a cena da mulher na ponte, você já pensou em filmar?", pergunto.
"Não estou pronto. Quando estiver, talvez signifique que o Iraque seja um país novamente", responde Mhawi, no volante do utilitário, a caminho do aeroporto. "Mas não conto com isso tão cedo."

"Um passaporte iraquiano sai por US$ 500; um europeu, por até US$ 20 mil. Minas pessoais? Lança-foguetes? Tudo isso é de fácil acesso, o que leva a mais previsões sombrias"

"Se antes havia a opressão da ditadura do partido Baath de Saddam Hussein, o caos da "democracia" implantada a bala pelos EUA levou a um acerto de contas entre o mundo secular e o religioso"

"O secularismo está acossado. A famosa rua Mutanabi, com seus cafés filosóficos, livrarias e candidatos a poeta, nunca mais voltou à forma após um grande atentado em 2007"


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