São Paulo, domingo, 03 de julho de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

O avesso da ribalta

Em turnê - A parada

COLETTE
tradução IVO BARROSO

É EM FLERS, onde o trem sacolejante e vagaroso nos despeja, nos abandona, a nós, trupe sonolenta, bocejante e resmungona, numa dessas belas tardes de primavera acre, arejada pela brisa do leste, azul, estriada de nuvens esgarçantes, cheirando a lilás recentemente florido...
O ar livre açoita-nos a face, e contraímos as pálpebras, castigadas, como convalescentes que tiveram alta antes do tempo. O trem, que nos levará daqui, só deve chegar dentro de duas horas e meia...
- Duas horas e meia! Que vamos fazer?
- Vamos enviar cartões-postais!
- Vamos tomar café com leite...
- Vamos jogar escopa...
- Vamos conhecer a cidade...
O empresário da turnê nos aconselha a visitar o parque: com isto, poderá dormir no bar da estação, o nariz metido no colarinho em pé, sem ser perturbado por esse grupo ranzinza a reclamar em volta...
Pois vamos visitar o parque!
Eis-nos deixando a estação, com toda a hostil curiosidade da cidadezinha a nos seguir.
- Nunca viram gente como nós! -diz a "ingênua", agressiva.- Nestas cidades onde não há espetáculos, as pessoas sempre são muito bisbilhoteiras!
- Naquelas onde há, também são -observa a "criada", desabusada.-Estamos feias, sem graça e sem humildade. Pálidas por excesso de trabalho ou então coradas por um almoço às pressas. A chuva de Douai, o sol de Nîmes, o vento repleto de salsugem de Biarritz esverdearam, chamuscaram nossas lamentáveis "farpelas" de turnê, casacões tapa-misérias que se gabam de ser de "estilo inglês". Dormimos, pela França afora, com nossos chapéus-gorros deformados, salvo a grande vedete que balança, sobre uma bandeja de veludos negros poeirentos, três plumas pomposamente fúnebres...
Olho-os agora como se jamais tivesse visto esses três penachos de coche funerário e a mulher que está embaixo.
Na cidade "onde não há espetáculos", ela parece deslocada, estrambótica, com seu perfil burboniano: "Não sei por que todos dizem que me pareço com a Sarah... Que vocês acham?".
Uma borrascazinha garrida se embarafusta pelas nossas saias, ao desembocarmos na praça, e os cabelos oxigenados da "ingênua" soltam ao vento suas mechas onduladas. Ela grita, agarrando o chapéu, e vejo, entre as sobrancelhas e os cabelos, ao longo da têmpora, uma linha vermelha mal apagada -o ruge da maquiagem da véspera...
Por que não tenho forças de desviar os olhos quando as calcinhas da "criada" enfrentam a luz do dia, calcinhas de elástico plissado e as botinas de tecido?! E que miragem me faria esquecer o colarinho falso do nosso jovem primeiro ator, branco-cinza, com uma linha de "base" ocre no alto... O cachimbo do ator cômico, seu cachimbo lustroso de sarro, a guimba do segundo diretor de cena, a fita violeta enegrecida da roupeira, a barba descolorida e coagulada do velho ator-pai, que pano de fundo feérico, com suas flores e plantas movediças, seria capaz de ocultá-los de mim? Ah, como ficam visíveis nesta "cidade onde não há espetáculos"!
Ai, e quanto a mim!... Por mais rápido que passasse diante da vitrina do relojoeiro, o reflexo não deixou de me mostrar os secos cabelos tênues, e estas duas sombras tristes sob os olhos, a boca seca de sede, e a figura franzina nesse tailleur marrom cujas abas moles se erguem e tornam a cair... Tenho o ar de um besouro desalentado, vencido pela chuva de uma noite de primavera... O ar de um pássaro sem penas... o ar de uma governanta desonrada... O ar... meu Deus, tenho o ar de uma atriz em turnê, e isto basta...
Eis o parque prometido. A recompensa valeu bem mais que essa longa e penosa caminhada sobre pés moídos de ficarem calçados dezoito horas por dia... O parque imenso, e um castelo adormecido, com todas as persianas cerradas, no meio de um gramado, com aleias de árvores de escassa ou tenra folhagem, apenas surgindo, e os jacintos silvestres e os cucos...
Sem querer, a gente se comove ao estreitar entre os dedos mornos uma flor viva, fria de sombra, inteiriçada de um vigor tão novo!... A luz coada pelos ramos, clemente para os nossos rostos maltratados, impõe a pausa e o silêncio. Um sopro vivo desce de súbito do fuste das árvores, corre pelas aleias a perseguir as vergônteas e se perde à nossa frente como um fantasma brincalhão...
Permanecemos caladas, mas não por muito tempo.
- Ah! o campo!... -suspira a "ingênua".
- Mas que tal se sentássemos? -propõe a criada. - Minhas pernas estão entrando no chão.
Ao pé de uma faia acetinada, repousamos, ambulantes sem glória e sem beleza. Os homens fumam e as mulheres voltam os olhos para as entranhas das aleias, para um buquê ardente de rododendros cor de brasa, que fenece sobre um gramado próximo...
- Para mim, o campo enfastia -diz o cômico, aos bocejos. - Só penso em dormir!...
- Sim, mas é um cansaço sadio! -decreta a criada.
A "ingênua" ergue as espáduas roliças:
- Um cansaço sadio! Você me dá engulhos! Nada envelhece mais a mulher do que a vida do campo, todos sabem!
O segundo diretor de cena tira o cachimbo da boca, cospe e começa:
- Uma impressão de melancolia, não de todo sem grandeza, eleva-se...
- Ah! Cala a boca!... -resmunga baixo o jovem primeiro ator, consultando o relógio como se temesse atrasar-se numa deixa.
Aquele rapaz enorme, balofo e pálido, que faz pequenos papéis, observa um escaravelho que vem com sua couraça azul e o azucrina com a ponta de um graveto...
Já eu respiro com energia, para apreender e relembrar os odores esquecidos, que sobem para mim como do fundo de um poço há pouco aberto. Alguns há que me escapam e cujos nomes já não sei...
Nenhum de nós está sorrindo, e, se a grande vedete trauteia, é uma ariazinha tão interrompida, tão dolente... Não nos sentimos bem aqui, tudo aqui é bom demais, belo demais!
Um pavão familiar aparece, no fim da alameda, e, por trás do leque que desdobra, percebemos que o céu se torna róseo... A tarde chega. O pavão caminha lentamente ao nosso lado, como um vigia cortês encarregado de nos fazer sair. Oh! Está bem, já vamos... Meus companheiros agora estão quase às pressas...
- Não vamos correr o risco, minha gente!...
Sabemos bem, todos nós, que não perderemos o trem. Mas lá deixamos o jardim, o silêncio e a paz, a nobre ociosidade, a solidão de que somos indignos. Corremos para o hotel, para o camarim sufocante e a ribalta que ofusca. Corremos, apressados, loquazes, cacarejantes, para essa ilusão de viver intensamente, de nos sentirmos aquecidos, de trabalhar, de não pensar em nada, de não levar conosco nem lamentos, nem remorsos, nem lembranças...


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