São Paulo, domingo, 04 de julho de 2010

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CRÍTICA

Lapidador do dia a dia

Tchekhov e a gangrena social da Rússia

RESUMO
Nascido há 150 anos, Anton Tchekhov (1860-1904) prefigurou a literatura moderna em suas peças e contos, marcados pelo corte abrupto, pelo olhar distanciado e pela riqueza de tipos humanos. Traduções recentes restituem a grandeza do autor, fino observador das novas feições da Rússia rural e urbana do final do século 19.

LEONARDO FRÓES

"AOS QUE VIRÃO DEPOIS DE NÓS" é uma ideia que ocorre a três por dois em Tchekhov. Com pequenas variações, a frase está em muitos das centenas de seus contos e é manifestada no teatro por personagens como Verchinin, de "As Três Irmãs", Trofímov e Ânia, de "O Jardim das Cerejeiras", e Sônia, de "Tio Vânia".
O vislumbre de uma humanidade melhor em 200, 300 ou milhares de anos se contrapõe nos textos do autor ao que ele mostra com isenta objetividade: uma sociedade em fase terminal. As duas últimas décadas do século 19 impunham grandes transformações. Mas o mundo czarista de fundamento agrário, tornando-se obsoleto ante o vapor da indústria, que retalhava com o trem de ferro as fazendas, apodrecia por inércia.
Pelas futuras gerações da espécie, sacrifica-se a sociedade doente, que sofre, sobretudo, de estreiteza mental. A trajetória do humano importa mais que suas manifestações provisórias. Clinicamente, como o médico praticante que foi, Tchekhov observa e anota os sintomas que ausculta no corpo social gangrenado. Não lhe cabe tomar partido, nem ceder à tentação de opinar. Sua função é coletar os dados que os sentidos apuram. Seus contos são anamneses, às vezes inconclusivas.
Evitar o desfecho de mão única é um dos trunfos autorais que o situam num quase ponto de largada para trilhas modernas. Em vez de pontos finais, a conclusão de muitos relatos -aqui e ali alguma ação que ficará em suspenso- são hipóteses apresentadas a quem pratica a leitura. O conto não acaba, mas se interrompe. A vida continua. Que o leitor complete os finais, ou que os deixe mais abertos ainda, com base nos dados que tem aos olhos.
É também como um documentarista meticuloso e imparcial que Tchekhov registra o que acontece ao redor: a ganância desmedida de uns, a boçalidade desesperada de outros, o desânimo, a obstinação, a esperteza. Como pregou a concisão, a frieza e a simplicidade da escrita, é a imagem mais direta que ele pretende reter: "Por que a moral e a verdade devem ser apresentadas não na sua forma crua, mas com misturas, inevitavelmente de forma açucarada e dourada, como as pílulas?" - pergunta-se o procurador Bikovski, personagem do conto "Em Casa", em "Um Homem Extraordinário e Outras Histórias" [L&PM, trad. de Tatiana Belinky, 2007, 176 págs., R$ 12].
Desdobra-se nos contos de Tchekhov uma cidade primal que vai mudando de nome, de feição urbanística e de posição geográfica, conforme as exigências do tema, mas que conserva os mais antiquados padrões e, basicamente, é sempre a mesma. Provinciana e cruel com quem se afasta, por pouco que seja, de suas ancestrais tolices, do peso morto das convenções que a sufocam, dos preconceitos cristalizados que a impedem de saborear liberdade.
O modelo da cidade tacanha supõe-se ser Taganrog, no mar de Azov, cafundó no sul da Rússia, onde Anton Pavlovitch Tchekhov nasceu em 17 de janeiro de 1860. Sob o estigma da pobreza, como neto de um servo e filho de um vendeiro falido, ali viveu até os 19 anos, quando já escrevia seus primeiros trabalhos.
Nos contos, se predominam os burgueses robustos, mais fáceis de caricaturar por seus excessos, ou os pobres explorados, mais passíveis de compaixão pela indigência, também há espaço disponível para os tipos excêntricos -a consciência negativa da cidade cega e inclemente.
Sacha, em "A Noiva", no volume "A Dama do Cachorrinho e Outras Histórias" [L&PM, trad. de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, 2009, 192 págs., R$ 13], é o artista insubmisso, procedente de Moscou, que em visita à sua antiga província declara guerra à mesmice. É também um dos que aludem à futura vida melhor, quando prenuncia o fim da triste cidade -"não restará pedra sobre pedra, tudo irá para o espaço"- e antevê jardins maravilhosos, edifícios imensos, "fontes fantásticas, pessoas admiráveis" que hão de surgir ali algum dia.
Envolvido com as mudanças, Sacha obtém uma tremenda vitória: convence sua melhor amiga, a noiva do título, a desistir de um casamento marcado que ela faria só por costume, por comodismo, mas sem sentir nenhum amor pelo parceiro que a espera. Apesar disso, e de seu puro coração, Sacha será sacrificado, morrendo jovem, aos que virão depois de nós.
Por sua vez, o excêntrico médico Andréi Iefímitch, do conto "Enfermaria Nº 6", em "O Beijo e Outras Histórias" [Editora 34, trad. de Boris Schnaiderman, 2006, 272 págs., R$ 38], um dos mais famosos de Tchekhov, antevê um futuro inteligente, sem prisões ou manicômios, sem grades nas janelas ou roupões de internados. Psiquiatra dos loucos da cidade, cinco indivíduos trancados como bichos na enfermaria asquerosa, ele irá encontrar num deles, homem de originais filosofias, a única companhia local que lhe desperta interesse.
O médico, de apático e indolente que era, cansado da vidinha medíocre que o afastara das rodas sociais, torna-se pleno de entusiasmo e energia nos seus debates com o louco. É um dos personagens de Tchekhov que, diante de novas circunstâncias, mais se transforma interiormente. Mas tanto ele visita o novo amigo, tanto as discussões se acaloram, nas horas mais imprevistas, que seu comportamento soa estranho e o consideram louco também.
A visão distante, a visão clínica, desembaraçada de afetos, pressupõe ou sugere, pela prática, certa dose de indiferença em relação à trama dos fatos. Muitos personagens de Tchekhov apontam nesse sentido, como se o patamar da indiferença fosse uma pausa necessária para aceitar a vida em geral.
Tchekhov contraiu tuberculose ainda jovem e conviveu com a doença. Morreu aos 44 anos, em 2 de julho de 1904, em Badenweiler, na Alemanha, durante uma última tentativa de cura. Em 1880, quando ainda estudava medicina em Moscou, começou a vender para jornais os breves contos de humor que foram por vários anos seu principal ganha-pão. Tornou-se o arrimo da família, com a decaída do pai, e dedicou-se com afinco à criação dos irmãos.
Foi um estoico, que resistia serenamente aos embates. Quando morreu, era um autor já consagrado, cujas peças estariam em breve pelos palcos do mundo. De início, conheceu alguns malogros. Mas em 1898 suas peças tinham finalmente encontrado, com Stanislavski e Nemirovitch-Dantchenko, que as encenaram no Teatro de Arte de Moscou, a direção inovadora que as transformou em sucessos.
O olhar distante, que se supõe no autor que escreve perante a morte que o ronda, é o que está na voz dos contos. Nesses, o narrador procura não julgar e, por grande senso de equilíbrio, sempre apresenta o outro lado das questões que discute. Missail, que se autodescreve em "Minha Vida", conto ainda por traduzir no Brasil, como um excêntrico íntegro, resolve mudar de classe. Sendo seu pai um arquiteto rico e obtuso, ele, que quer se sustentar pelo seu próprio suor, vira pintor de paredes. Rejeita o mundo corrupto que, a seu ver, era a vida da cidade sob os privilégios e as cenas das funções burocráticas.
A servidão foi abolida, mas o capitalismo nasceu, e Missail se identifica com os pobres que continuam sendo explorados. Porém, no dia a dia com os pobres, pouco a pouco Missail descobrirá entre eles os mesmos graves defeitos que o tinham feito fugir da sociedade dos ricos: mentiras, traições, trapaças, roubalheiras.
No xadrez das novas relações econômicas, que então estava sendo armado, o destino das terras - vendas, heranças, confiscos, penhoras - é um dos temas mais frequentes e de mais carga simbólica, quer nos contos, quer nas peças de Tchekhov. Mudam as propriedades de dono, mudam-se os horizontes em volta, com o sangue novo que entra em jogo.
Por um lado, o progresso que enerva a Rússia arcaica traria luzes de longe, junto com os edifícios imensos, as fontes fantásticas e as pessoas admiráveis da utopia de Sacha. Por outro, de concreto, o progresso que então se estruturava queria montes de lenha para alimentar as fornalhas e tábuas para edificar mais espaços, mais galpões, mais celeiros, e punha abaixo as florestas que restavam.
Há pouco mais de cem anos, desde que "Tio Vânia" foi escrita, Sônia e Ástrov comentam nessa peça a situação que existia. As florestas embelezam, inspiram, suavizam o clima, diz ela. E ele diz que as florestas estão sendo arrasadas, que "há enchentes e secas por toda parte", que "espécies animais são exterminadas e o clima se torna hostil ao homem". É o mesmo diálogo que se repete desde a noite de 26 de outubro de 1899, quando o grupo de Stanislavski montou pela primeira vez "Tio Vânia", com a atriz Olga Knipper, futura mulher de Tchekhov, no papel de Helena.
O mundo muda quando eu mudo? A esperança que há nos textos de Tchekhov por uma vida melhor, dentro, talvez, de milhares de anos, não nos parece advir simplesmente das mudanças operadas pelo lado de fora. É frequente que personagens dos contos, como Riabóvitch, de "O Beijo", ou Gúrov, de "A Dama do Cachorrinho", passem por vívidas transformações internas quando o acaso os submete a experiências fatais.
O primeiro, após ser beijado num quarto às escuras, por engano, por uma estranha perfumada, foi transformado de homem feio e incolor num turbilhão de euforia. Já nem se lembra de ter sido quem era, depois que as sensações o engolfaram, e quer sorrir, falar, correr, dançar. Gúrov, o segundo mutante, habituado a trair a mulher sem se envolver com seus casos, mudou da água para o vinho quando encontrou sua dama: foi refinar a consciência numa paixão verdadeira, coisa que ele nunca tinha vivido.
Nos personagens de Tchekhov, esses momentos de iluminação repentina, por voláteis que sejam, são momentos transfiguradores da alma, células de pensamento ou elementais que procriam. São eles, na ficção, que dão peso e sentido ao mundo novo entrevisto, essa invenção de cada gesto, cada sentimento no texto. Se o mundo muda quando eu mudo, tenho o futuro em minhas mãos. De um modo responsável, serei capaz de moldá-lo em mim para os outros.
Tchekhov se casou com Olga Knipper em 1901, mas os dois pouco conviveram. Ela continuou em Moscou, seguindo a carreira artística. E ele ficou morando em Ialta, onde o clima do mar Negro lhe convinha à saúde, na casa em que hoje funciona um dos seus seis museus que há na Rússia. Os dois estavam juntos, no balneário de Badenweiler, quando Tchekhov morreu na Alemanha, três anos depois do casamento formal. Na hora de morrer, Olga contaria mais tarde, ele pediu uma taça de champanhe, como se em outra noite de estreia.
Nos 150 anos de seu nascimento, esse lapidador do dia a dia que fez do conto uma arte, um dos maiores, junto com Poe, Machado, Maupassant, Cortázar, Kafka, merece agora um brinde a mais. Sereno, como parece que ele foi.
Até meados do século 20, seus contos circulavam no Brasil em edições duvidosas, retraduzidas geralmente do espanhol ou do francês. Agora, no rumo aberto por Boris Schnaiderman, outros bons tradutores, como Tatiana Belinky, Rubens Figueiredo e Maria Aparecida B.P. Soares, nos dão os textos traduzidos diretamente do russo.
Nos livros aqui presentes, o conto "Kachtanka" [Cosac Naify, trad. de Rubens Figueiredo, ilustrações de Guenádi Spirin, 2008, 40 págs., R$ 42], fundamental entre os mais citados, pode ser lido em três versões pelos três primeiros, lembrando-se que a de Rubens Figueiredo é uma adaptação infantil. Já Maria Aparecida também assina a tradução de outra seleta, a mais recentemente lançada: "Um Negócio Fracassado e Outros Contos de Humor" [L&PM, 2010, 208 págs., R$ 13].
Os contos de Tchekhov, assim como as peças, resistiram ao desgaste no tempo por serem prosa de artista. De um menino magro e frágil, por exemplo, ele diz que "era murcho de corpo como um legume cozido". De um cachorro em quem ninguém confiava, diz o seguinte: "Por baixo do seu ar submisso e respeitoso, esconde-se uma dissimulação de jesuíta. Ninguém melhor do que ele para se aproximar sorrateiramente e dar uma mordida no pé...".

"Como médico, Tchekhov observa os sintomas do corpo social gangrenado. Não lhe cabe tomar partido. Seus contos são anamneses, às vezes inconclusivas"

"O olhar distante, que se supõe no autor que escreve perante a morte que o ronda, é o que está na voz dos contos. Nesses, o narrador procura não julgar"


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