|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.
CRÍTICA
Lapidador do dia a dia
Tchekhov e a gangrena social da Rússia
RESUMO Nascido há 150 anos, Anton Tchekhov (1860-1904) prefigurou a literatura
moderna em suas peças e contos, marcados pelo corte abrupto, pelo olhar
distanciado e pela riqueza de tipos humanos. Traduções recentes restituem a
grandeza do autor, fino observador das novas feições da Rússia rural e urbana do
final do século 19.
LEONARDO FRÓES
"AOS QUE VIRÃO DEPOIS DE NÓS" é uma ideia que ocorre a três por dois em
Tchekhov. Com pequenas variações, a frase está em muitos das centenas de seus
contos e é manifestada no teatro por personagens como Verchinin, de "As Três
Irmãs", Trofímov e Ânia, de "O Jardim das Cerejeiras", e Sônia, de "Tio Vânia".
O vislumbre de uma humanidade melhor em 200, 300 ou milhares de anos se
contrapõe nos textos do autor ao que ele mostra com isenta objetividade: uma
sociedade em fase terminal. As duas últimas décadas do século 19 impunham
grandes transformações. Mas o mundo czarista de fundamento agrário, tornando-se
obsoleto ante o vapor da indústria, que retalhava com o trem de ferro as
fazendas, apodrecia por inércia.
Pelas futuras gerações da espécie, sacrifica-se a sociedade doente, que sofre,
sobretudo, de estreiteza mental. A trajetória do humano importa mais que suas
manifestações provisórias. Clinicamente, como o médico praticante que foi,
Tchekhov observa e anota os sintomas que ausculta no corpo social gangrenado.
Não lhe cabe tomar partido, nem ceder à tentação de opinar. Sua função é coletar
os dados que os sentidos apuram. Seus contos são anamneses, às vezes
inconclusivas.
Evitar o desfecho de mão única é um dos trunfos autorais que o situam num quase
ponto de largada para trilhas modernas. Em vez de pontos finais, a conclusão de
muitos relatos -aqui e ali alguma ação que ficará em suspenso- são hipóteses
apresentadas a quem pratica a leitura. O conto não acaba, mas se interrompe. A
vida continua. Que o leitor complete os finais, ou que os deixe mais abertos
ainda, com base nos dados que tem aos olhos.
É também como um documentarista meticuloso e imparcial que Tchekhov registra o
que acontece ao redor: a ganância desmedida de uns, a boçalidade desesperada de
outros, o desânimo, a obstinação, a esperteza. Como pregou a concisão, a frieza
e a simplicidade da escrita, é a imagem mais direta que ele pretende reter: "Por
que a moral e a verdade devem ser apresentadas não na sua forma crua, mas com
misturas, inevitavelmente de forma açucarada e dourada, como as pílulas?" -
pergunta-se o procurador Bikovski, personagem do conto "Em Casa", em "Um Homem
Extraordinário e Outras Histórias" [L&PM, trad. de Tatiana Belinky, 2007, 176
págs., R$ 12].
Desdobra-se nos contos de Tchekhov uma cidade primal que vai mudando de nome, de
feição urbanística e de posição geográfica, conforme as exigências do tema, mas
que conserva os mais antiquados padrões e, basicamente, é sempre a mesma.
Provinciana e cruel com quem se afasta, por pouco que seja, de suas ancestrais
tolices, do peso morto das convenções que a sufocam, dos preconceitos
cristalizados que a impedem de saborear liberdade.
O modelo da cidade tacanha supõe-se ser Taganrog, no mar de Azov, cafundó no sul
da Rússia, onde Anton Pavlovitch Tchekhov nasceu em 17 de janeiro de 1860. Sob o
estigma da pobreza, como neto de um servo e filho de um vendeiro falido, ali
viveu até os 19 anos, quando já escrevia seus primeiros trabalhos.
Nos contos, se predominam os burgueses robustos, mais fáceis de caricaturar por
seus excessos, ou os pobres explorados, mais passíveis de compaixão pela
indigência, também há espaço disponível para os tipos excêntricos -a consciência
negativa da cidade cega e inclemente.
Sacha, em "A Noiva", no volume "A Dama do Cachorrinho e Outras Histórias" [L&PM,
trad. de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, 2009, 192 págs., R$ 13], é o
artista insubmisso, procedente de Moscou, que em visita à sua antiga província
declara guerra à mesmice. É também um dos que aludem à futura vida melhor,
quando prenuncia o fim da triste cidade -"não restará pedra sobre pedra, tudo
irá para o espaço"- e antevê jardins maravilhosos, edifícios imensos, "fontes
fantásticas, pessoas admiráveis" que hão de surgir ali algum dia.
Envolvido com as mudanças, Sacha obtém uma tremenda vitória: convence sua melhor
amiga, a noiva do título, a desistir de um casamento marcado que ela faria só
por costume, por comodismo, mas sem sentir nenhum amor pelo parceiro que a
espera. Apesar disso, e de seu puro coração, Sacha será sacrificado, morrendo
jovem, aos que virão depois de nós.
Por sua vez, o excêntrico médico Andréi Iefímitch, do conto "Enfermaria Nº 6",
em "O Beijo e Outras Histórias" [Editora 34, trad. de Boris Schnaiderman, 2006,
272 págs., R$ 38], um dos mais famosos de Tchekhov, antevê um futuro
inteligente, sem prisões ou manicômios, sem grades nas janelas ou roupões de
internados. Psiquiatra dos loucos da cidade, cinco indivíduos trancados como
bichos na enfermaria asquerosa, ele irá encontrar num deles, homem de originais
filosofias, a única companhia local que lhe desperta interesse.
O médico, de apático e indolente que era, cansado da vidinha medíocre que o
afastara das rodas sociais, torna-se pleno de entusiasmo e energia nos seus
debates com o louco. É um dos personagens de Tchekhov que, diante de novas
circunstâncias, mais se transforma interiormente. Mas tanto ele visita o novo
amigo, tanto as discussões se acaloram, nas horas mais imprevistas, que seu
comportamento soa estranho e o consideram louco também.
A visão distante, a visão clínica, desembaraçada de afetos, pressupõe ou sugere,
pela prática, certa dose de indiferença em relação à trama dos fatos. Muitos
personagens de Tchekhov apontam nesse sentido, como se o patamar da indiferença
fosse uma pausa necessária para aceitar a vida em geral.
Tchekhov contraiu tuberculose ainda jovem e conviveu com a doença. Morreu aos 44
anos, em 2 de julho de 1904, em Badenweiler, na Alemanha, durante uma última
tentativa de cura. Em 1880, quando ainda estudava medicina em Moscou, começou a
vender para jornais os breves contos de humor que foram por vários anos seu
principal ganha-pão. Tornou-se o arrimo da família, com a decaída do pai, e
dedicou-se com afinco à criação dos irmãos.
Foi um estoico, que resistia serenamente aos embates. Quando morreu, era um
autor já consagrado, cujas peças estariam em breve pelos palcos do mundo. De
início, conheceu alguns malogros. Mas em 1898 suas peças tinham finalmente
encontrado, com Stanislavski e Nemirovitch-Dantchenko, que as encenaram no
Teatro de Arte de Moscou, a direção inovadora que as transformou em sucessos.
O olhar distante, que se supõe no autor que escreve perante a morte que o ronda,
é o que está na voz dos contos. Nesses, o narrador procura não julgar e, por
grande senso de equilíbrio, sempre apresenta o outro lado das questões que
discute. Missail, que se autodescreve em "Minha Vida", conto ainda por traduzir
no Brasil, como um excêntrico íntegro, resolve mudar de classe. Sendo seu pai um
arquiteto rico e obtuso, ele, que quer se sustentar pelo seu próprio suor, vira
pintor de paredes. Rejeita o mundo corrupto que, a seu ver, era a vida da cidade
sob os privilégios e as cenas das funções burocráticas.
A servidão foi abolida, mas o capitalismo nasceu, e Missail se identifica com os
pobres que continuam sendo explorados. Porém, no dia a dia com os pobres, pouco
a pouco Missail descobrirá entre eles os mesmos graves defeitos que o tinham
feito fugir da sociedade dos ricos: mentiras, traições, trapaças, roubalheiras.
No xadrez das novas relações econômicas, que então estava sendo armado, o
destino das terras - vendas, heranças, confiscos, penhoras - é um dos temas mais
frequentes e de mais carga simbólica, quer nos contos, quer nas peças de
Tchekhov. Mudam as propriedades de dono, mudam-se os horizontes em volta, com o
sangue novo que entra em jogo.
Por um lado, o progresso que enerva a Rússia arcaica traria luzes de longe,
junto com os edifícios imensos, as fontes fantásticas e as pessoas admiráveis da
utopia de Sacha. Por outro, de concreto, o progresso que então se estruturava
queria montes de lenha para alimentar as fornalhas e tábuas para edificar mais
espaços, mais galpões, mais celeiros, e punha abaixo as florestas que restavam.
Há pouco mais de cem anos, desde que "Tio Vânia" foi escrita, Sônia e Ástrov
comentam nessa peça a situação que existia. As florestas embelezam, inspiram,
suavizam o clima, diz ela. E ele diz que as florestas estão sendo arrasadas, que
"há enchentes e secas por toda parte", que "espécies animais são exterminadas e
o clima se torna hostil ao homem". É o mesmo diálogo que se repete desde a noite
de 26 de outubro de 1899, quando o grupo de Stanislavski montou pela primeira
vez "Tio Vânia", com a atriz Olga Knipper, futura mulher de Tchekhov, no papel
de Helena.
O mundo muda quando eu mudo? A esperança que há nos textos de Tchekhov por uma
vida melhor, dentro, talvez, de milhares de anos, não nos parece advir
simplesmente das mudanças operadas pelo lado de fora. É frequente que
personagens dos contos, como Riabóvitch, de "O Beijo", ou Gúrov, de "A Dama do
Cachorrinho", passem por vívidas transformações internas quando o acaso os
submete a experiências fatais.
O primeiro, após ser beijado num quarto às escuras, por engano, por uma estranha
perfumada, foi transformado de homem feio e incolor num turbilhão de euforia. Já
nem se lembra de ter sido quem era, depois que as sensações o engolfaram, e quer
sorrir, falar, correr, dançar. Gúrov, o segundo mutante, habituado a trair a
mulher sem se envolver com seus casos, mudou da água para o vinho quando
encontrou sua dama: foi refinar a consciência numa paixão verdadeira, coisa que
ele nunca tinha vivido.
Nos personagens de Tchekhov, esses momentos de iluminação repentina, por
voláteis que sejam, são momentos transfiguradores da alma, células de pensamento
ou elementais que procriam. São eles, na ficção, que dão peso e sentido ao mundo
novo entrevisto, essa invenção de cada gesto, cada sentimento no texto. Se o
mundo muda quando eu mudo, tenho o futuro em minhas mãos. De um modo
responsável, serei capaz de moldá-lo em mim para os outros.
Tchekhov se casou com Olga Knipper em 1901, mas os dois pouco conviveram. Ela
continuou em Moscou, seguindo a carreira artística. E ele ficou morando em
Ialta, onde o clima do mar Negro lhe convinha à saúde, na casa em que hoje
funciona um dos seus seis museus que há na Rússia. Os dois estavam juntos, no
balneário de Badenweiler, quando Tchekhov morreu na Alemanha, três anos depois
do casamento formal. Na hora de morrer, Olga contaria mais tarde, ele pediu uma
taça de champanhe, como se em outra noite de estreia.
Nos 150 anos de seu nascimento, esse lapidador do dia a dia que fez do conto uma
arte, um dos maiores, junto com Poe, Machado, Maupassant, Cortázar, Kafka,
merece agora um brinde a mais. Sereno, como parece que ele foi.
Até meados do século 20, seus contos circulavam no Brasil em edições duvidosas,
retraduzidas geralmente do espanhol ou do francês. Agora, no rumo aberto por
Boris Schnaiderman, outros bons tradutores, como Tatiana Belinky, Rubens
Figueiredo e Maria Aparecida B.P. Soares, nos dão os textos traduzidos
diretamente do russo.
Nos livros aqui presentes, o conto "Kachtanka" [Cosac Naify, trad. de Rubens
Figueiredo, ilustrações de Guenádi Spirin, 2008, 40 págs., R$ 42], fundamental
entre os mais citados, pode ser lido em três versões pelos três primeiros,
lembrando-se que a de Rubens Figueiredo é uma adaptação infantil. Já Maria
Aparecida também assina a tradução de outra seleta, a mais recentemente lançada:
"Um Negócio Fracassado e Outros Contos de Humor" [L&PM, 2010, 208 págs., R$ 13].
Os contos de Tchekhov, assim como as peças, resistiram ao desgaste no tempo por
serem prosa de artista. De um menino magro e frágil, por exemplo, ele diz que
"era murcho de corpo como um legume cozido". De um cachorro em quem ninguém
confiava, diz o seguinte: "Por baixo do seu ar submisso e respeitoso, esconde-se
uma dissimulação de jesuíta. Ninguém melhor do que ele para se aproximar
sorrateiramente e dar uma mordida no pé...".
"Como médico, Tchekhov observa os sintomas do corpo social gangrenado. Não lhe
cabe tomar partido. Seus contos são anamneses, às vezes inconclusivas"
"O olhar distante, que se supõe no autor que escreve perante a morte que o ronda,
é o que está na voz dos contos. Nesses, o narrador procura não julgar"
Texto Anterior: Folha.com Próximo Texto: De volta para o futuro Índice
|