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IMAGINAÇÃO
prosa, poesia e tradução
Conversa de um bêbado com um diabo sóbrio
ANTON TCHEKHOV
tradução PAULO BEZERRA
LAKHMÁTOV, EX-FUNCIONÁRIO DE INTENDÊNCIA e secretário de colegiado aposentado,
estava à mesa em sua casa bebendo o 16° cálice e pensando na fraternidade, na
igualdade e na liberdade. Súbito, de trás de uma lâmpada, olhou para ele o
diabo... Mas não se assuste, leitor. Você sabe o que é o diabo? É um jovem de
aparência agradável, de cara preta como botas, focinho e expressivos vermelhos
olhos. Tem chifres na cabeça, embora nem seja casado. Usa penteado "a la
Kapul".1 Tem o corpo coberto por uma lã verde e cheira a cachorro. Abaixo da
espinha balança o rabo, que tem uma seta na ponta... Em vez de dedos tem unhas,
em vez de pés, cascos de cavalo. Lakhmátov ficou meio confuso ao ver o diabo,
mas logo se acalmou quando se lembrou de que diabos verdes têm o tolo hábito de
aparecer a todos aqueles que tomaram um trago.
- Com quem tenho a honra de falar? - perguntou ao intruso.
O diabo ficou confuso e baixou os olhinhos.
- Não fique acanhado - continuou Lakhmátov. - Chegue-se mais perto... Sou um
homem sem preconceitos, o senhor pode ser sincero comigo... Fale como amigo...
Quem é o senhor?
O diabo chegou-se indeciso a Lakhmátov e, encolhendo o rabo, fez uma reverência
cortês.
- Sou o diabo, ou capeta... - apresentou-se. - Sou funcionário de missões
especiais junto à pessoa de Sua Excelência Satanás, diretor da chancelaria do
inferno.
- Ouvi falar, ouvi falar. Muito prazer. Sente-se! Não aceitaria uma vodca? Estou
muito contente... E o que o senhor faz?
O diabo ficou ainda mais confuso...
- Propriamente falando, não tenho ocupação definida... - respondeu ele
pigarreando embaraçado e assuando o nariz na folha de um "Rébus".2 - Antes nós
tínhamos ocupação efetiva. Tentávamos as pessoas... desviávamos do caminho do
bem para as sendas do mal... Hoje em dia essa ocupação, "entre nous soit dit",3
não vale uma cusparada. E, além disso, as pessoas ficaram mais espertas do que
nós. Procure você tentar um homem que já aprendeu todas as ciências na
universidade, estudou o fogo, a água e os tubos de cobre! Como posso ensiná-lo a
roubar um rublo se, sem minha colaboração, você já afanou milhares?
- É verdade... Mas, não obstante, você tem alguma ocupação, não?
- Sim... Hoje nossa antiga função pode ser apenas nominal, mas mesmo assim temos
trabalho... Tentamos damas de classe, impelimos os rapazinhos para a poesia,
levamos comerciantes bêbados a quebrarem espelhos. Já em política, em literatura
e em ciências não nos metemos há muito tempo... Nesse campo não entendemos
patavina. Muitos de nós são colaboradores de "Rébus", há até aqueles que
largaram o inferno e se tornaram gente... Esses diabos reformados, que se
tornaram gente, casaram-se com comerciantes ricas e hoje levam uma vida ótima.
Uns se dedicam à advocacia, outros editam jornais, são pessoas muito ativas e
respeitadas!
- Desculpe a indiscrição: quais são os seus vencimentos?
- Nossa situação continua a mesma... - respondeu o diabo. - O quadro de
funcionários efetivos não mudou... Continuamos tendo casa, luz e calefação por
conta do erário... Vencimentos não recebemos, pois todos somos extranumerários e
porque ser diabo é uma função respeitável.... Para ser franco, em linhas gerais
se vive mal, ainda que a gente peça esmolas... Somos gratos aos homens; eles nos
ensinaram a aceitar propina, senão já teríamos esticado as canelas há muito
tempo... E assim vamos vivendo de rendas... A gente fornece provisões aos
pecadores e aí... mete a mão... Satanás envelheceu, está sempre saindo para
contemplar a Zucci,4 não liga mais para prestação de contas...
Lakhmátov serviu um cálice de vodca ao diabo. Ele o bebeu e soltou a língua.
Contou todos os segredos do inferno, abriu a alma, desabafou, e agradou tanto a
Lakhmátov que este o manteve em sua casa para pernoitar. O diabo dormiu no forno
e passou a noite inteira delirando. Ao amanhecer escafedeu-se.
Notas do tradutor
1. Penteado usado na Rússia no século 19, que deixava as madeixas caindo sobre a
testa. A expressão se deve a Joseph Kapul, tenor francês que cantou na Ópera de
São Petersburgo na época de Tchekhov e foi um criador de moda entre os russos.
2. Revista espiritualista publicada em São Petersburgo na época de Tchekhov.
3. "Cá entre nós", em francês.
4. Trata-se da bailarina italiana Virginia Zucci (1849-1930). Zucci chegou a São
Petersburgo em 1885, atuou em balés de Marios Petipa, nome fundamental na
história do balé clássico russo, tornou-se muito popular e, entre 1885 e 1888,
integrou o corpo de balé do Teatro Mariinski de São Petersburgo, dançando também
em Moscou e Odessa.
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