São Paulo, domingo, 05 de junho de 2011

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LITERATURA

Telescópio satírico

Lima Barreto, um mestre na periferia da República

RESUMO
O carioca Lima Barreto fez de seus contos e romances um painel satírico da sociedade na República Velha. Para além da mera crítica social, sua obra denota um complexo perfil psicológico, em que o destino do país e a matéria autobiográfica se mesclam para compor um retrato compassivo e dolorido da condição humana.

OTAVIO FRIAS FILHO

Uma das épocas mais opacas da história do país, a República Velha (1889-1930) deixou a imagem bolorenta e monótona de uma estrutura fossilizada e imune a mudanças, exceto pela troca, que ocorria com perfeita regularidade constitucional e nenhuma legitimidade eleitoral, de um presidente insípido por outro.
A noção de um país arcaico, dominado por uma oligarquia agrária e onde uma estreita elite urbana imitava, às raias do ridículo, as maneiras das nações "civilizadas", é certamente verdadeira. Mas isso não deveria ocultar que aquela foi também uma era de antagonismo social e revoltas populares.
O conflito essencial da República Velha opôs um reformismo de inspiração positivista, quase sempre autoritária, quando não militar, a um liberalismo conservador que provinha do Império escravocrata e continuava disposto a aceitar um grau incrível de divórcio entre as aparências e a realidade.

PAINEL SATÍRICO O que define a singularidade de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) é que ele não adotou nenhum desses dois pontos de vista. Treinado na picardia da efervescente boemia literária da belle époque e na incubadeira de escritores da crônica jornalística carioca, seu manejo literário ganhou, graças ao distanciamento social em relação aos dois campos em confronto, uma capacidade de penetração inédita, que ele soube empregar para fazer um painel satírico da sociedade brasileira em traços tão intensos que são ainda reconhecíveis.
A sátira se volta contra políticos corruptos, magnatas truculentos, generais de araque, madames melindrosas, burocratas mesquinhos, literatos afetados e toda a casta de doutores isolada em sua torre de privilégios numa sociedade tão desigual. Ao mesmo tempo, Lima Barreto mostra a vida na "periferia" da época, os subúrbios em volta do centro da cidade, emaranhado de ruelas mal-arranjadas onde sobrevive uma humanidade frágil, de pequenos funcionários, artesãos, viúvas e aposentados.
Aqui, diferente da sátira de tom feroz aos cafés e teatros na elegante rua do Ouvidor, o escritor derrama um olhar compassivo que se enche de lirismo, sempre desolado diante da opressão, da injustiça e da morte. Essa característica de autor comprometido com a crítica social, aliada à ascendência escrava e à pobreza em que viveu, pode gerar a impressão errônea de que Lima Barreto foi um escritor ignorado em seu tempo.

PROTEÇÃO Seus pais ascenderam sob a proteção de notáveis do Império, o que propiciou ao futuro romancista estudar em bons colégios e cursar a Escola Politécnica. O pai, tipógrafo e funcionário público, enlouqueceu em 1902, obrigando Lima Barreto a abandonar o sonho de doutor a fim de sustentar a família. Empregou-se como amanuense ""redator e copista de documentos"" na Secretaria da Guerra. Seguiria amanuense até se aposentar por invalidez, pouco antes de morrer, depois de duas internações no manicômio devidas a crises de alucinação alcoólica.
Mas sua principal atividade, a partir de 1902, foi escrever na imprensa e frequentar cafés literários. Em 1905, trabalhou como repórter no famoso "Correio da Manhã". Lia muito: seus escritos denotam uma erudição de autodidata à altura dos literatos da época. Ao morrer, deixou uma biblioteca de 800 volumes.
Se os livros que publicou em vida pouco venderam e não foram aclamados, tiveram recepção favorável de críticos ilustres. Embora ressalvasse que a "amargura" do autor transparecia demais no livro de estreia, José Veríssimo o qualificou de "excelente, distinto, revelador de talento real".
Já em 1916, ao resenhar "Triste Fim de Policarpo Quaresma", seu melhor e mais celebrado romance, Oliveira Lima chamou o herói de "Quixote nacional" e estabeleceu o nexo entre o livro e seu renomado ancestral, "Memórias de um Sargento de Milícias" (1852-55), de Manuel Antônio de Almeida. Monteiro Lobato, outro entusiasta do autor, publicou seu romance "Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá" em 1919.

PSICOLOGIA A tônica social impregnada na imagem do escritor encobre uma psicologia complexa. Lima Barreto tinha sua literatura em alta conta e almejava nada menos do que a "glória". Quase maldizia, porém, a ilustração que recebera e as oportunidades de desenvolver o próprio talento, pois lhe haviam incitado a ambição e tornado excruciante o contraste entre seus méritos pessoais e o preconceito com que deparava a cada passo, aguçando uma sensibilidade exacerbada diante da menor afronta ou humilhação.
Não fosse essa configuração psicológica, ele talvez não lograsse focalizar a totalidade social concentrada no espaço urbano do Rio sob a mira de tão potente telescópio satírico, que exagera seus objetos até o limite da caricatura (outra restrição artística feita à época, mas que lhe valeu ser comparado a Jonathan Swift), com o propósito de rasgar as aparências numa sociedade fundada nelas.
Seus numerosos contos foram reunidos em edição anotada no ano passado ["Contos Completos de Lima Barreto", org. e introd. de Lilia Moritz Schwarcz, Cia. das Letras, 712 págs., R$ 51]. O ouro alquímico que se reduz a ossos dos mortos; o golpista que adquire fama de sábio porque passa por versado em javanês; o casal de respeitáveis ingleses reverenciados na pensão onde se hospedam até descobrir-se que são dois aventureiros; o velho comerciante português que seduz a cabrocha para depois constatar que ela é o produto de uma antiga aventura sua. O remate dos contos é quase sempre a revelação de um âmago oculto e inverso às aparências.

AUTOBIOGRAFIA A obra completa de Lima Barreto foi publicada em 1956 por seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa. Recentemente, seu romance inacabado, "O Cemitério dos Vivos", foi reeditado junto com o "Diário do Hospício", registro da segunda internação no Manicômio da Praia Vermelha [org. Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura; prefácio de Alfredo Bosi, Cosac Naify, 352 págs., R$ 55]. A comparação entre os textos explicita o caráter autobiográfico que perpassa os demais livros.
O primeiro romance, "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" (1909), também foi relançado há pouco, com copiosas notas explicativas [introd. de Alfredo Bosi e notas de Isabel Lustosa, Penguin Companhia, 312 págs., R$ 26,50]. Elas permitem identificar em detalhe a galeria de figurões ""João do Rio, Pandiá Calógeras, Coelho Neto, Viriato Correia"" retratados de modo impiedoso e com aquela precisão expressiva, de traços vigorosos e sintéticos, que compunha o estilo de Lima Barreto.
É um romance de ascensão social, em que um jovem mulato e talentoso ""o próprio autor"" abre caminho em meio às baixezas e frivolidades do mandarinato que gravita em redor das redações, dos cafés e dos bordéis. "O Globo", onde se passa grande parte da narrativa, é o "Correio da Manhã", diário fundado em 1901 por Edmundo Bittencourt, que promovia, através do jornal, desenfreado ataque às autoridades.
Ali as aparências também desmoronam, pois, no relato do narrador, o periódico é um valhacouto de oportunistas e sabichões; seu civismo intrépido não passa de expressão das vaidades feridas do proprietário; e sua diligente crítica, cheia de empáfia gramatical, encobre trocas de favores numa consagração recíproca de medalhões. A inesquecível cena do suicídio do crítico literário diante da resenha que não consegue terminar é um exemplo das manobras vertiginosas do cômico para o sublime, uma das especialidades do autor.

POLICARPO Cômico e sublime estão reunidos em seu maior personagem, o major Policarpo Quaresma. É fulminante o rendimento humorístico do pacato militar que se converte em patriota idealista, um intransigente na terra do jeitinho, perdido no redemoinho de uma revolução de opereta, cercado de aproveitadores boçais e assassinos displicentes.
No "Triste Fim" [introd. Lilia Moritz Schwarcz, Penguin Companhia, 368 págs., R$ 25], surge a maior composição feminina do autor, Olga, a afilhada de Quaresma, irradiação de encanto e virtude feminina, a vagar como uma criatura de Tolstói ou Dostoiévski pelas antessalas de Floriano Peixoto, na tentativa desesperada de obter do ditador indulto para o padrinho fadado ao fuzilamento.
Floriano é apresentado de forma sombria e lacônica, com sua placidez de réptil, de palito entre os dentes e chinelos em palácio, "asiático, cruel e paternal ao mesmo tempo". A saúva, tema que fez carreira literária de Saint-Hilaire a Mário de Andrade, aparece na incursão agrícola do protagonista como ícone de alguma fatalidade nacional, uma explicação quase metafísica para o atraso ""para a nossa revolução burguesa em câmera lenta, que leva séculos a universalizar os direitos fundamentais.
Se Lima Barreto combateu o futebol, que considerava mais uma imitação de costumes europeus, sem prever a apropriação popular que o esporte experimentaria no Brasil, sua intuição fez do violão um personagem onipresente no romance, como se antevisse que, por meio desse instrumento, a canção brasileira seria uma das mais fecundas do mundo.
É de esperar que se reedite em breve seu último grande romance, "Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá", escrito por volta de 1906, na mesma época das "Recordações". Nesse livro, o protesto social se amplifica até uma escala cósmica de indignada lamentação contra a inutilidade do mundo e a estupidez dos homens.
É sua obra mais serena, na qual as imprecações de profeta do biografado se alternam com árias de amor à natureza, em especial ao mar e ao céu do Rio de Janeiro, obra onde talvez melhor se tenha consumado o ideal de Lima Barreto da literatura como "comunhão dos homens [...] na infinita dor de serem homens".

É fulminante o rendimento humorístico do pacato militar que se converte em patriota idealista, um intransigente na terra do jeitinho

A sátira se volta contra políticos corruptos, magnatas truculentos, generais de araque, madames melindrosas, burocratas mesquinhos, literatos afetados

O protesto social se amplifica até uma escala cósmica de indignada lamentação contra a inutilidade do mundo e a estupidez dos homens


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