São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2010

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CRÍTICA

Crônicas de 1930

Em dois romances, os primórdios da era Vargas

RESUMO
A Revolução de 1930, marco do início da era Vargas, é a inspiração de dois romances recém-publicados por autores gaúchos. As narrativas suscitam reflexões sobre a eficácia do uso de episódios históricos como matriz ficcional e os possíveis paralelos sugeridos nos livros entre as políticas sociais de Vargas e as de Lula.

MAURICIO PULS

AO FIM DA ERA LULA, dois romancistas gaúchos tentam recontar a origem da era Vargas -esse passado que permanece contemporâneo. Juremir Machado da Silva e Moacyr Scliar produziram, porém, narrativas muito distintas tanto no objeto como no método de composição.
O ponto de partida do livro de Juremir, "1930 - Águas da Revolução" [Record, 266 págs., R$ 39,90], são as lembranças de Gabriel d'Ávila Flores, talvez o último combatente da revolução ainda vivo, cuja trajetória vai sendo contada ao lado da história principal.
O eixo do romance é a reconstituição do encontro que marcou a reconciliação entre Getúlio Vargas e João Neves da Fontoura, um dos articuladores da insurreição. Por meio das recordações de Getúlio e João Neves, o autor apresenta, com riqueza de detalhes, a história política do país de 1921 a 1930.
Narrado em terceira pessoa, o livro se apoia em extensa pesquisa documental realizada pelo ficcionista, que em 2004 já havia publicado o romance "Getúlio" (Best Bolso). Não por acaso, o historiador Boris Fausto, autor da conhecida obra "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras), recorreu ao trabalho de Juremir para escrever seu recente estudo "Getúlio Vargas - O Poder e o Sorriso" (Companhia das Letras), observando que, "embora seja ficcional, apoia-se em muitos fatos reais".
O novo romance de Juremir está igualmente impregnado de realidade. Seu conteúdo histórico, contudo, não se ajusta bem à forma romanesca. A caracterização psicológica dos protagonistas se dilui na descrição exaustiva dos fatos da época. E, apesar da acumulação de eventos, nunca fica claro por que Getúlio é tão prudente, e João Neves, tão impulsivo.
Juremir quer demonstrar que Getúlio embutiu uma "revolução social" dentro da conspiração conservadora articulada pelos líderes da Aliança Liberal, "surpreendendo seus companheiros de luta". Mas, ao isolar o presidente das forças políticas que o apoiam, só consegue transformá-lo em um homem "inescrutável, enigmático, profundamente solitário".
Sem decifrar os fundamentos sociais dessa "revolução inesperada", o autor não consegue produzir um relato unitário: a trajetória de Gabriel d'Ávila Flores não tem conexão com a exposição principal, precisamente porque não há um sentido geral capaz de ordenar todos os destinos individuais.
A primeira frase do livro -"Nada parecia destinar o gaúcho Getúlio Dornelles Vargas a comandar uma revolução"- resume a questão que o romance não esclarece: por que o movimento liderado por uma oligarquia rural terminou por destruir o domínio de todas as oligarquias, abrindo caminho para a industrialização do país?
Talvez esses problemas resultem da opção de retratar personagens reais, o que sempre limita as possibilidades de criação literária. Como explica Aristóteles, a história se atém ao singular, enquanto a arte busca o universal entranhado no singular: por isso, o historiador só relata "as coisas que sucederam", enquanto o poeta conta "as que poderiam suceder", segundo a natureza dos homens.
Em seu tratado sobre o romance histórico, Georg Lukács assinala que, paradoxalmente, as pessoas e os eventos aparentemente insignificantes são mais apropriados para a refiguração ficcional do passado do que os grandes dramas e seus heróis, já que a arte não visa reproduzir os acontecimentos em si, mas as razões que levaram os homens a pensar, a sentir e a agir daquela forma.
Por essa razão, Lukács elogia Walter Scott por usar em seus romances figuras menores, que, não estando ligadas a somente uma das forças políticas em luta, se tornam capazes de expressar a totalidade social de um período.
Essa é justamente a opção de Moacyr Scliar em "Eu Vos Abraço, Milhões" [Companhia das Letras, 256 págs., R$ 39,50], que obtém um resultado literário muito mais coeso e convincente.
Seu herói é um adolescente, Valdo, que vê seu pai ser humilhado por seu patrão. Revoltado, aproxima-se de Geninho, um jovem comunista, e decide entrar no PCB.
Com esse propósito, viaja em 1929 ao Rio para conhecer o líder do partido, Astrojildo Pereira, mas este estava na União Soviética. Quando volta, já tinha caído em desgraça, e Valdo desiste de vê-lo.
Impedido de se filiar ao PCB, o jovem ateu é obrigado a buscar um emprego para se manter, mas só arruma o de auxiliar de pedreiro na construção do Cristo Redentor.
Na capital, apaixona-se pela anarquista Rosa, que em 1931 lhe confia a tarefa de explodir o monumento no dia de sua inauguração. Um acidente inteiramente fortuito resolve seu dilema. Ele retorna ao Rio Grande do Sul com a mãe. Abandona os ideais da juventude e alcança êxito como eletricista, tornando-se empresário.
O romance consiste numa carta na qual Valdo, já viúvo e recolhido a um asilo, conta sua vida ao neto que mora nos EUA. Walter Benjamin diz que "o local de nascimento do romance é o indivíduo na sua solidão, que já não consegue exprimir-se exemplarmente sobre seus interesses fundamentais, pois ele mesmo está desorientado e não sabe mais aconselhar".
Valdo não sabe como aconselhar o neto, mas ainda é capaz de recordar -"um prazer melancólico, decerto, mas um prazer". E, ao fazer um balanço pessoal, conclui que é feliz: "Se houvesse um exame vestibular de felicidade, provavelmente eu nele passaria; arranhando, mas passaria".
O protagonista mantém certo distanciamento crítico em relação ao seu próprio passado -o que contribui para a verossimilhança da narrativa, mas tem o efeito colateral de induzir o leitor a também guardar distância do personagem, que está sempre se explicando e se justificando.
Em seu conjunto, "Eu Vos Abraço, Milhões" é um belo romance, mas talvez pudesse ser melhor. Se tomamos "São Bernardo", de Graciliano Ramos -que também usa a Revolução de 1930 como pano de fundo-, o protagonista Paulo Honório também reconhece seus erros. Tal autocrítica, porém, não permeia toda a composição, mas se concentra no final, embora o narrador tenha consciência dos problemas desde o início. A inverossimilhança de Paulo Honório foi bastante criticada, mas, do ponto de vista estético, é eficaz.
O livro de Moacyr Scliar recria os diversos matizes da esquerda na República Velha (1889-1930) e descreve os sacrifícios que a militância política impunha à vida pessoal dos ativistas. Mas seu alcance supera largamente o mero relato de uma existência singular.
Em oposição à epopeia, que está ancorada no passado, o horizonte do romance é o presente. Mesmo a história dos romances históricos é sempre um passado inacabado, um princípio que fez do presente aquilo que é.
No romance de Scliar, o destino individual de Valdo, que desiste do projeto revolucionário, reconcilia-se com a realidade e alcança êxito na sua vida pessoal, recorda ao leitor contemporâneo a opção da esquerda brasileira pós-64: também ela trocou os ideais socialistas por um reformismo social-democrata e alcança agora uma aprovação recorde.
Nesse sentido, a era Lula possui notável semelhança com a era Vargas, e é essa intuição que parece mover os dois romancistas gaúchos. Assim como a grande inovação de Getúlio foi a extensão da cidadania às massas urbanas (salário mínimo, férias, descanso semanal), o maior feito do governo Lula foi a extensão da cidadania às massas rurais (Bolsa Família, Luz para Todos, Pronaf).
Vargas e Lula constituem, portanto, duas etapas dessa "revolução dentro da ordem" -para usar uma expressão do sociólogo Florestan Fernandes ("A Revolução Burguesa no Brasil")-, que marcou a consolidação do capitalismo no país e a demorada incorporação dos trabalhadores urbanos e rurais ao mercado interno.
Sim, a vida melhorou, mas em que medida Valdo é feliz? Hoje ele só se preocupa com coisas pequenas -"onde deixei a chave?"- para não ter de pensar nas grandes: "Qual é o sentido da vida?".
O romance, dizia Lukács, responde à questão de como a vida pode adquirir um sentido -de como a existência humana pode se tornar essencial. No caso de Valdo e do país, a existência não se tornou essencial, é certo, mas se tornou melhor.
Isso é pouco? Depende do ponto de vista. Fausto conseguiu a salvação ao levar, com a ajuda de Mefistófeles, o progresso a uma nação. Esse bem-estar material talvez seja praticamente nada. Mas, para aqueles que não tinham nada, este pouco é tudo.

As pessoas e os eventos aparentemente insignificantes são mais apropriados para a refiguração ficcional do que os grandes dramas e seus heróis, já que a arte visa reproduzir as razões que levaram os homens a pensar, a sentir e a agir daquela forma

A era Lula possui notável semelhança com a era Vargas, e é essa intuição que parece mover os dois romancistas gaúchos. A grande inovação de Getúlio foi a extensão da cidadania às massas urbanas, e a de Lula, a extensão da cidadania às massas rurais


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