São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Carta para Glauber

Salvador, 1959

HELENA IGNEZ

"GLAUBELENA" está escrito no convite do nosso casamento, em 30 de junho de 1959. Escolhemos a igreja de Nosso Senhor dos Aflitos, em Salvador, para oficializar de maneira católica a nossa relação amorosa. Você, de formação protestante como toda a sua família materna, sertaneja [de Vitória da Conquista, na Bahia], recebeu o batismo católico escondido de sua mãe uma semana antes do casamento, tendo a minha prima Aldair como madrinha.
Morávamos com nossas famílias nos Barris, quase vizinhos, na mesma rua General Labatut, eu no número cinco e você no 15, sem eu lhe conhecer e você me conhecendo de vista e de nome pelos estudantes que moravam na pensão de dona Lúcia, sua mãe querida, na mesma rua, no número 14, que ficava em frente à minha casa.
Eu lhe conheci no dia do seu aniversário, 14 de março, meu primeiro dia de aula na Faculdade de Direito. Assim o conheci nesse 14 de março, que também era aniversário de Castro Alves [1847-71]. Você estava no auditório da faculdade. Olhamo-nos logo que entrei, você no palco, e sorrimos um para o outro. Já tinha tido muitos namorados, mas o que senti naquele momento era diferente de tudo.
Naquele mesmo dia, na troca de olhares e sorrisos de cumplicidade inesquecível, voltamos juntos a pé da faculdade para nossas casas pela Ladeira do Salete, conversando e rindo juntos, você surpreendido de eu já ter lido muito. Você me falou em Clarice Lispector e me deu um livro, "O Lustre", e me disse de cara que, nesse dia comum de aniversário seu e de Castro Alves, você iria morrer aos 42 anos, data inversa à do poeta, morto aos 24.
Além de intrigada e surpreendida, me apaixonei por você, menino da minha idade, muito diferente dos meus ex-namorados, você que não tinha carro e não dirigia, que era da minha altura, diferente em tudo.
Juntos começamos a circular por Salvador com certo escândalo, numa cidade preconceituosa e racista. Você usando calça de elástico na cintura, tipo pijama, que só você usava na rua, muito baixa, quase na virilha, com jaleco de cangaceiro e alpargatas. Eu, menina Audrey Hepburn, bonequinha de luxo andando na sua frente e você atrás com seu grupo de amigos que por nada se separava de você, mesmo quando estava comigo. De alguns, gostava muito: Paulo Gil [Soares], que escreveu o poema "Glaubelena" no convite de nosso casamento, Luiz Paulino [dos Santos], que tinha filmado "Um Dia na Rampa", e Joca [João Carlos Teixeira Gomes], que se tornou seu biógrafo [autor de "Glauber Rocha - Esse Vulcão", Nova Fronteira].
Você, líder absoluto, era adorado pelo grupo que tinha um certo ciúme do nosso namoro.
Aos 18 anos, você era a grande vedete literária da Bahia e foi com essa designação que consegui apoio financeiro do banqueiro Pamphilo de Carvalho para produzir o curta-metragem "O Pátio", nosso primeiro filme.
Nessa época, eu lhe chamava de Binho (Glaubinho) e você me chamava de Binha. No casamento, tivemos quatro padrinhos -Jorge Amado e Zélia Gattai, o famoso tapeceiro Genaro de Carvalho e sua mulher Nair- e inúmeras testemunhas no civil, todas artistas de primeira grandeza, como o escultor Mario Cravo, o artista plástico Sante Scaldaferi e nossos inúmeros amigos e amigas que mais tarde tornaram-se figuras proeminentes de Salvador, como o João Ubaldo Ribeiro.
Nesse dia, tive um presságio como uma sombra por trás da leve alegria. O casamento que não conseguiria destruir o profundo afeto e afinidade entre nós terminaria com um grande escândalo, com dolorosas consequências.
Aconteceu. Antes disso, quando nasceu nossa filha Paloma, você me escreveu este poema:

"Num chora Binhasinha
Chorar é pra Palominha
Binho aminho você
Sorrisa Lena, alegre coca
E tatasinhos rubros -
moranguinhos de xuca
E beijinhos.
Binhoso Osa."

Saudades de você.
Dessa companheira marginal e eterna.


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