São Paulo, domingo, 08 de maio de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Madona

SÉRGIO SANT'ANNA

NÃO DEMOREI a me dar conta do quanto foi inútil entrarmos armados e encapuzados no museu, nos arriscarmos em plena luz da tarde para levarmos as obras. Pois elas eram conhecidas demais de todo mundo para serem vendidas, e qualquer colecionador ou amante da arte que pagasse para ter os quadros teria de escondê-los para usufruir deles em segredo, como eu próprio, e às vezes chego a pensar - e não apenas pelo roubo- que minha angústia é idêntica à do homem que cruza a ponte e grita, e se fosse apenas este o quadro, creio que o teria destruído.
"O Grito" é o inferno que uma mente humana pode abrigar, o retrato do desespero sem fim e, se o destruísse, gostaria que fosse com uma faca pontiaguda retalhando a tela, como se assim pudesse destruir toda dor e sofrimento. Mas quantos bilhões são os seres humanos e quantas e quantas vezes tal angústia não poderá se repetir?
O inferno é aqui na Terra e Edvard Munch conseguiu retratá-lo na expressão do homem que atravessa de noite a ponte, na boca o ricto escancarado e as mãos segurando o rosto, sob uma atmosfera inacreditavelmente sinistra em cores esquizofrênicas, vermelha e amarela. Suportaria eu, sem me destruir, a dor de conviver interminavelmente com "O Grito" não fosse a Virgem?
Sim, a "Madona" que está na outra tela que roubamos é virgem, sem dúvida, pois não podemos admiti-la partilhando sua intimidade com um homem e se, para ser a mãe de Cristo, não deveria haver nenhum conhecimento carnal, também não podemos admitir a "Madona" de Munch em trabalhos assistidos de parto, amamentação, troca de fraldas. Ah, não, não há Jesus no momento desta pintura.
Há a "Madona" de Munch e houve quem dissesse que representava também a angústia, mas não a vejo assim, o que há é a noite azul-escura e a virgem com um halo vermelho sobre a cabeça e o rosto lindíssimo e sonhador ou melancólico; o que há é a sedução da noite iluminada pelo tronco e seios belíssimos da "Madona", em que temos vontade de repousar o rosto e seria impensável e sacrílego, mesmo para os incréus, mostrar o seu sexo. Enfim, os mistérios gozosos da parte superior de seu corpo oferecido a homens de sensibilidade. Oferecido a mim. E depois de ver a "Madona" nunca mais poderei apartar-me dela, que aplaca toda a angústia, embora permaneça em mim a ânsia de abraçá-la, envolver seus seios. E ela apaga todos os amores vividos, então tornados uma reles imitação, para ser para sempre o primeiro e único amor.


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