São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2010

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INTERNACIONAL

Brasil para principiantes

Querem fechar o piscinão de Ramos

RESUMO
Livros sobre o Brasil recém-lançados nos EUA procuram apresentar o país ao público internacional e não especializado. Ao buscar fazer comparações históricas, culturais e políticas entre os dois países, os autores cometem erros de informação, fazem simplificações e reiteram lugares-comuns a respeito da cultura brasileira.

CLAUDIA ANTUNES

O QUE SERIA DE BOA PARTE do jornalismo internacional sem estereótipos, generalizações e comparações imperfeitas?
O repórter americano Larry Rohter que o diga. Na onda em torno do Brasil -consagrada com a capa da "Economist", de novembro de 2009, em que o país é um foguete que decola-, ele acaba de lançar "Brazil on the Rise - The Story of a Country Transformed" ["Brasil em Ascensão - A História de um País Transformado", Palgrave MacMillan, 304 págs., R$ 45].
No livro, pretende traçar para o público americano um retrato sem clichês de uma nação "que não é para principiantes" (a citação é de Tom Jobim).
Rohter não é um principiante. É casado com uma brasileira, esteve no Brasil pela primeira vez em 1972 e por 14 anos viveu aqui como correspondente.
Peregrinou pelo território nacional até os confins da Amazônia e conhece bem as manifestações culturais do país -às quais dedica um bom capítulo do livro, em que vai da Semana de Arte Moderna de 1922 ao tropicalismo, passando por literatura de cordel, Aleijadinho e novelas da Globo.
No entanto, ele não escapa das simplificações que promete evitar.
Seu problema não parece vir da falta de familiaridade com o objeto de estudo, mas de uma visão unidimensional do público-alvo (o leitor dos EUA), ao qual acena quando discorre sobre a "mistura única de valores e práticas europeias, africanas e indígenas", o caráter "flexível", a malandragem e o jeitinho brasileiros.
Enquanto as "sociedades anglo-saxãs", diz, "subscrevem um ideal de justiça, oportunidades iguais e imparcialidade", os brasileiros se guiam pela "Lei de Gerson" (o importante é levar vantagem em tudo) e por códigos de conduta diferentes para a casa e para a rua (a proposição é do antropólogo Roberto DaMatta).
A questão não está tanto na comparação -culturalismo corriqueiro-, mas em inferências mais amplas feitas a partir dela. Exemplos:
1) O presidente americano Franklin Roosevelt (1933-45) foi obrigado a "comprar" a cooperação de Getúlio Vargas na Segunda Guerra, financiando a usina siderúrgica de Volta Redonda (não há menção à Política da Boa Vizinhança);
2) O sistema de representação proporcional do Brasil, propiciador de instabilidade e corrupção, é "pouco usual" (ou será o distrital simples americano, alvo de críticas nos EUA por desfavorecer a alternância no Legislativo?);
3) O acordo para arrendar aos EUA a base de foguetes de Alcântara (MA) foi minado sob o "argumento paranoico" de que daria aos americanos uma plataforma de infiltração na Amazônia (não é citado que o acordo vetava o uso do dinheiro no programa espacial brasileiro nem a tradição ultrassoberanista dos próprios EUA).
Ao falar da boa relação de George W. Bush e Lula -desafeto desde que tentou expulsar Rohter, em 2004, quando este publicou no "New York Times" que o hábito de beber do presidente era uma preocupação nacional-, o repórter os descreve como "muito parecidos", não só pelo gosto por churrasco ou por falar errado:
"Ambos chegaram aos cargos com [...] entendimento limitado da política internacional e de outros povos e culturas".
O arremate forçado ilustra a tendência de Rohter de minar bons argumentos com exemplos descuidados -como no caso do capítulo em que ataca o "mito" da democracia racial brasileira.
Ao comparar as experiências do Brasil e dos EUA, ele diz que, se o gradualismo da Abolição (1888) evitou uma guerra civil como a americana (1861-65), não houve aqui "um esforço oficial para ajudar os escravos libertos a se tornarem autossuficientes ou garantir seus direitos, como a 14ª Emenda [à Constituição] fez nos EUA".
A emenda, como se sabe, ficou no papel. Foi preciso a Lei dos Direitos Civis, em 1964, para pôr fim à segregação e garantir aos negros direitos como o de voto nos Estados do Sul americano.
Foi um caso de legislação que "não pegou" -característica brasileira para a qual Rohter só encontra equivalência nos EUA na "Prohibition", que vetou a produção e o comércio de bebidas alcoólicas entre 1920 e 1933.
Em favor do repórter, é preciso dizer que é difícil para estrangeiros satisfazer o país radiografado, em especial quando pretendem captar sua alma em traços breves e atraentes.
Menos risco correu Riordan Roett, especialista em América Latina da Universidade Johns Hopkins que lançou "The New Brazil" ["O Novo Brasil", Brookings Institution, 178 págs., R$ 50], seu terceiro livro sobre o país.
Roett faz um relato, amparado na economia política, da história do país até sua "emergência no palco mundial", com o cuidado de cotejar o processo com o cenário externo -a ascensão de Vargas depois da crise de 1929, os limites do Consenso de Washington nos anos 90, a afirmação chinesa na última década.
O acadêmico também tem uma visão mais sofisticada da política externa lulista do que Rohter, que endossa a tese enviesada de que o ativismo recente foi uma compensação à esquerda pela ortodoxia macroeconômica.
Iniciativas como a Unasul (União de Nações Sul-Americanas) "não devem ser vistas como anti-EUA", escreve Roett, mas como "reflexo da nova realidade da região, onde o desejo de construir instituições autônomas é e continuará forte". Em outro trecho, ele define os negociadores brasileiros como "duros, mas pragmáticos".
Na projeção externa brasileira, o limite para os dois autores são os interesses americanos em segurança e defesa -ambos condenam a tentativa de mediação do impasse sobre o programa nuclear do Irã.
"Lula, ou seu sucessor, precisarão entender que um perfil maior do Brasil implica uma conduta internacional responsável. Se o Brasil pretende ser considerado mais do que o permanente 'país do futuro', precisará atualizar sua diplomacia para combinar com seu potencial energético e comercial", prescreve Roett.
Os livros compartilham duas lacunas.
Primeiro, não se aprofundam no histórico das relações Brasil-EUA. Talvez pela assimetria que as marcou no século 20, quando os EUA sempre tiveram mais importância para o Brasil do que o contrário.
Como diz Roett, "o governo americano fala, de tempos em tempos, da possibilidade de uma relação mais forte com o Brasil, mas fez pouco, se é que alguma coisa, para desenvolver um plano de ação concreto".
Rohter arrisca a interpretação de que o "senso de excepcionalismo" do Brasil equivale ao americano e que isso complica a relação bilateral. Diz que "há pouco" na biblioteca presidencial de Lyndon Johnson (1963-69) que confirme a acusação de que os EUA "instigaram ou dirigiram" o golpe de 1964.
De fato, a participação direta no 31 de Março não foi provada. Mas a afirmação ignora o envolvimento na desestabilização de João Goulart e a mobilização de uma força-tarefa naval pelo governo Lyndon Johnson, já em 27 de março, para atuar em apoio aos militares caso houvesse resistência ao golpe -episódios já detalhados por historiadores com base em documentos da mesma biblioteca.
A segunda lacuna é a pouca importância que dão à Constituição de 1988 na redução das proverbiais desigualdades brasileiras, que ambos apontam como barreira ao desenvolvimento -o crédito de melhorias sociais vai todo para as políticas de FHC e de Lula.
A Constituição foi a resposta às demandas represadas pela ausência de democratização da propriedade durante a "modernização conservadora" do país. Ao prever amplos direitos sociais e econômicos, ela é uma chave para entender o Brasil -tanto nos avanços que proporcionou quanto pelo fato de ter amarrado o Orçamento do Estado.
Os livros fecham com conselhos aos governantes eleitos agora. O de Rohter é para que promovam a reforma política e terminem com os "vestígios de práticas autocráticas" tradicionais. O de Roett, que trabalhem "pela eliminação da pobreza e da injustiça".
Em tempo: ao contrário do que escreve Rohter, Dilma Rousseff não tem dois filhos, o piscinão de Ramos (lago artificial na zona norte do Rio) não foi fechado, as crianças brasileiras não são obrigadas a decorar "O Navio Negreiro", de Castro Alves (quem dera), e FHC e José Serra nunca foram "marxistas ortodoxos".

Ao falar da boa relação de George W. Bush e Lula -desafeto desde que tentou expulsar Larry Rohter, em 2004-, o repórter os descreve como "muito parecidos", não só pelo gosto por churrasco ou por falar errado

Riordan Roett faz um relato, amparado na economia política, da história do Brasil até sua "emergência no palco mundial", com o cuidado de cotejar o processo com o cenário externo, da crise de 1929 até a afirmação chinesa na última década


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