São Paulo, domingo, 12 de junho de 2011

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QUADRINHOS

Dante 2.0

"A Divina Comédia" em HQ




REUMO
A rica tradição visual de "A Divina Comédia", que ao longo dos séculos teve diversas interpretações ilustradas, se renova com adaptações para os quadrinhos. A opção radical de Chwast, que transpõe o poema para os anos 1930, contrasta com a reverência excessiva ao texto e às suas traduções, na versão de Bagnariol.


EDUARDO STERZI

QUEM TEM A SORTE de ler Dante em italiano sabe que ele se dirige antes de tudo aos nossos ouvidos. Somos logo levados a dizer seus versos em voz alta, para melhor saborearmos a complexa e variada musicalidade, da doçura mais fluida à mais dura aspereza, com que busca imprimir o significado ao significante, o pensamento (a imaginação, a vida) à forma: "Sì che dal fatto il dir no sia diverso" ("de modo que o dizer não seja diverso do fato").
No entanto, este apelo poético-linguístico ""e antes fônico, sonoro, musical"" não explicaria sozinho a persistência da obra para além de sua época e, em especial, para além do restrito círculo de leitores do idioma dantesco. Trata-se, afinal, de um dos raros textos literários firmemente arraigados no solo da Idade Média (ainda que de uma Idade Média em crise e transformação) que continuam a ser lidos nos mais diversos idiomas.
Mais decisivo, para isso, parece ter sido o poder que Dante tinha de criar imagens impactantes e comunicá-las ""na verdade, impô-las"" a quem o lê ou escuta.
Imagens inesquecíveis: sobretudo se, sem paradoxo, acabamos esquecendo de alguns de seus pormenores e, por isso mesmo, elas adquirem em nossas memórias algo como uma vida própria, que implica proliferação. É significativo que Italo Calvino comece sua conferência dedicada à "Visibilidade", quarta das suas "Seis Propostas para o Novo Milênio", com um exame de algumas passagens da "Comédia". Com Dante, experimentamos a força de uma poesia que quer tornar visível até ""ou sobretudo"" o invisível.

IMAGINAÇÃO VISUAL Já o dizia T. S. Eliot: "A imaginação de Dante é visual. É uma imaginação visual num sentido diferente daquele de um pintor moderno de natureza-morta: é visual no sentido de que ele viveu numa época em que os homens ainda tinham visões. [...] O esforço de Dante é o de nos fazer ver o que ele viu."
Daí que, frente à dúvida ainda hoje persistente quanto à "Comédia" ter sido ou não na sua origem um livro ilustrado, Gianfranco Contini afirme que se trata de um livro congenitamente "ilustrável": "Um livro autorizado pelo autor à ilustração, já que contém passos capitais em que se é convidado a uma representação visual".
E não foram poucos os artistas que se dedicaram à tarefa de traduzir as imagens virtuais de Dante em imagens plásticas: desenhos, gravuras, pinturas, esculturas... E, mais recentemente, filmes, quadrinhos, games...
Versões capazes de levar o texto além da letra, capazes de desocultar ou multiplicar sentidos, de reabrir o laboratório da imaginação do autor: em suma, recriações ou, para usarmos o preciso termo cunhado por Haroldo de Campos, transcriações.
Foi o que nos deram os grandes intérpretes visuais da obra: Sandro Botticelli, William Blake, Gustave Doré, Auguste Rodin, Giuseppe De Liguoro, Art Young, Salvador Dalí. Muito da percepção que temos do universo dantesco vem dessas transcriações, nas quais Dante se torna outro ""outros"" sem deixar de ser quem sempre foi, numa espécie de encontro, no meio do caminho, entre poeta e ilustradores.


CONCISÃO É uma experiência desse tipo que nos oferece o artista gráfico norte-americano Seymour Chwast na sua recente versão em quadrinhos, "A Divina Comédia de Dante" [trad. Alexandre Boide, Companhia das Letras, 128 págs., R$ 33].
Primor de concisão, a "graphic novel" de Chwast reduz os 14.233 versos do original a pouco mais de cem páginas de relativamente poucas palavras. Lembra nisso a simpática adaptação em prosa do português Marques Braga (autor também de uma tradução integral em verso), que abrevia cada canto em mais ou menos uma página.
Palavras, porém, são o que menos importa na versão de Chwast. Veja-se, por exemplo, o contraste entre a introdução, que termina com a observação de que "Dante usa A Divina Comédia' para despertar nossa consciência para a necessidade de uma vida moral e da crença no Deus das Escrituras", e o livro que temos em mãos, no qual este intento catequético é constantemente posto em questão pela refinada ironia dos desenhos.
Ironia histórica, antes de mais nada: os personagens ""o próprio Dante e Virgílio, mas também a maioria dos interlocutores que eles encontram ao longo de seu percurso pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso"" vestem roupas dos anos 1930.
"Queria um Dante parecido com um detetive de Dashiell Hammett, procurando pela verdade", explicou Chwast quando a edição norte-americana foi publicada, em 2010. O personagem Dante usa quase todo o tempo capa de chuva, chapéu, óculos escuros e cachimbo, os quais escondem qualquer esboço de expressão numa espécie de máscara sutil, mas impenetrável. O preto e branco dos desenhos corrobora essa deliberada inexpressividade.
IMPASSÍVEL Ironia, portanto, também antropológica e teológica. À diferença do protagonista frequentemente dominado pelo "pathos" no poema dantesco, temos aqui um Dante sumamente impassível, que não parece se comover com nada: nem com os sofrimentos dos condenados eternos do Inferno e temporários do Purgatório, nem com a alegria sem fim dos beatos do Paraíso, tampouco com a maravilha de seu próprio itinerário, estando vivo, pelos três reinos da morte.
No célebre encontro com Francesca e Paolo, Chwast simplesmente deixa de fora o que no relato de Dante era decisivo: a expressa empatia pelo destino do casal adúltero assassinado pelo marido traído. Ainda que o protagonista se diga "cativado pela triste história", não escutamos a voz de Francesca, testemunho direto que é determinante para que Dante se condoa ""e também o seu leitor.
A "Comédia" de Dante é fundamentalmente polifônica, coral; a de Chwast, monológica. Sem empatia, o desfalecimento de Dante ao fim do episódio, provocado pela forte comoção, fica sem sentido. Até o reencontro de Dante com Beatriz, sua amada morta, é destituído de emoção. Não há amor aqui. Essa impassibilidade, compartilhada em maior ou menor medida por todos os personagens, produz uma espécie de ponto de virada na tradição de representação visual da "Comédia", como se aqui a história de Dante se esvaziasse pela primeira vez de toda a sua dimensão divina "" e mesmo humana. Some sobretudo a ética do encontro, tão importante no poema: o modo como a narrativa se configura a partir da interlocução com vozes alheias, que servem de veículo para sujeitos fortemente individualizados.

BAGNARIOL Operação bem mais simples está na base da versão publicada pela Peirópolis, com desenhos de Piero Bagnariol (italiano que vive no Brasil desde 1992) e roteiro de seu pai, Giuseppe Bagnariol. Em "A Divina Comédia em Quadrinhos" [72 págs., R$ 39], a intenção parece ser a de recontar a história de Dante com o mínimo de interferências.
O texto, num procedimento arriscado, absorve os versos das traduções de Jorge Wanderley (Inferno), Henriqueta Lisboa (Purgatório, com a inclusão de versos do canto 6º), não traduzido por Henriqueta, na versão de Xavier Pinheiro) e Haroldo de Campos (Paraíso).
Para a seleção das traduções, que estão entre as melhores de Dante para o português, os autores contaram com a assessoria da dantista Maria Teresa Arrigoni.
Se por um lado é interessante que essa adaptação, dirigida a leitores jovens, proporcione o acesso a traduções de valor literário, por outro, a própria configuração dos quadrinhos é afetada pela excessiva reverência ao texto de Dante.
transbordamento A defasagem entre a síntese dos desenhos e a expansão dos versos não é explorada artisticamente, antes levando a um transbordamento dos próprios desenhos. Os únicos lampejos de irreverência são isolados pelos autores numa narrativa paralela que tem a função de permitir saltos na narrativa principal.
Nessa narrativa paralela, Dante, numa estalagem, trava conhecimento com os irmãos Bartolomeo e Cangrande della Scala, senhor e futuro senhor de Verona, e passa a recitar-lhes a "Comédia".
Esse procedimento é problemático, pois concentra sobretudo no ano de 1303 uma narrativa que, segundo os biógrafos mais reputados, foi escrita de 1304 a 1321 ""e que traz a marca desses anos.
Se a história fosse somente contada por Dante aos irmãos, sem os versos, poderíamos compreender seu relato com uma espécie de antecipação do livro a ser escrito a partir do ano seguinte.
Os desenhos são, no geral, ingênuos porém eficazes, com soluções mais interessantes aqui e ali, como a porta do Inferno figurada como uma ferida no tronco de uma imensa árvore seca. Piero Bagnariol propõe uma "Comédia" de dramatismo exacerbado ""antípoda, portanto, daquela de Chwast"" que talvez ganhasse em também usar preto-e-branco em lugar de uma paleta por vezes errática.

Com Dante, experimentamos a força de uma poesia que quer tornar visível até ""ou sobretudo"" o invisível

"Queria um Dante parecido com um detetive de Dashiell Hammett, à procura da verdade", explicou Seymour Chwast

O texto absorve as traduções de Jorge Wanderley (Inferno), Henriqueta Lisboa (Purgatório) e Haroldo de Campos (Paraíso)


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